O ódio nosso de cada dia

19/11/2023 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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O Brasil continua pródigo na produção de grandes talentos do futebol, esporte/arte fundamental do precioso capital simbólico dos nacionais. É o caso anunciado do adolescente Endrick, que vai amadurecer no Real Madrid, onde a força da grana ergue (lá) e destrói (cá) coisas belas.

Mas não é sobre futebol que eu gostaria de falar.

O fato: uma entrevista concedida pelo novo artista da bola, e bote novo nisso, chamou a minha atenção, não pelo conteúdo, mas pela forma. Ele disse a um portal de notícias que “odeia” balada. E aí gerou um debate sem fim sobre conceitos e comportamentos, entre jornalistas esportivos, que exaltaram, por um lado, a formação familiar de Endrick, ou, pelo contrário, apontaram para a desnecessidade da declaração.

É muita espuma, gente!

Ao garoto, acho, não cabe nenhum julgamento moral pelo dito. O que observei - e registro aqui - é apenas o fato de ele usar a linguagem própria das redes digitais. É nesse meio que se "odeia" de tudo, de cenoura a tomate; se "vomita" ao ouvir ou ler o nome de alguém; sente-se "nojo" de algo banal ou do desigual – tudo sempre muito intenso, quase que gritado, para que ninguém tenha dúvidas quanto aos sentimentos e emoções que habitam a alma do contundente declarante.

É claro, por óbvio, que o futuro craque, um garoto do seu tempo, não “odeia” a balada, mas é preciso pontuar de forma inequívoca e espontânea - no caso dele, sem premeditação, assim entendo -, que seus interesses não andam pela noite, atração fatal para todas as gerações de atletas ou não.

Que isso não se confunda com o discurso do ódio, que transita pelas redes à procura de corações infelizes, de almas ressentidas e dispostas a integrar os bandos virtuais dos que se julgam injustiçados pela vida e pelo mundo. Nada disso.

Sabe-se, por óbvio, que o ódio, ainda que difuso e em busca de um alvo qualquer, tem muito mais chance de prosperar do que o seu antagonista: o contágio é mais rápido numa espécie que precisou muito dele para sobreviver e chegar até aqui, mas que necessitará, em algum momento, aprender a domá-lo e enclausurá-lo para que possamos seguir adiante. Não é idealização, gente, mas a pura necessidade (tem bomba atômica demais espalhada pelo planeta).

Na atividade política, que sempre nos remete ao embate, à luta sem tréguas, o ódio sempre fez e faz sucesso. Por exemplo, Hitler elegeu os judeus e os comunistas como os grandes inimigos do povo alemão, e se as consequências são conhecidas hoje por qualquer pessoa medianamente informada, isso não parece ser suficiente para barrar a nossa inata xenofobia - que nasce do medo e se metamorfoseia no ódio em seu estado bruto. Afinal, os dois sentimentos, os mais primitivos, parecem ter uma origem biológica comum: a amígdala cerebelosa (sugiro a leitura de A ciência do ódio, do criminologista britânico Matthew Williams, que buscou se especializar no tema para compreender um pouco mais sobre o Homem).

A ditadura argentina, nos seus estertores, encontrou nos ingleses os inimigos que precisavam ser odiados - coletivamente - para que os fardados graduados tivessem uma sobrevida no controle do país e do seu povo. Os oficiais criminosos, que chegaram a ser julgados por lá, e alguns até foram condenados, viveram as delícias do poder por mais algum tempo à custa da morte de centenas de jovens - mal treinados, mal alimentados, mal equipados, vítimas fáceis dos militares profissionais britânicos, estes sempre prontos para a guerra. Era o ódio, mais uma vez, fazendo suas vítimas – entre odiadores e odiados.

Cá para nós, no dia a dia, o ódio, mesmo que tão banalizado, não pode se confundir com não gostar de algo ou de alguém, essas coisas que nos parecem mais amenas e que fazem parte do cotidiano de qualquer pessoa em qualquer idade. Afinal, numa escala até possível, apesar de ser um sentimento mais primitivo, ele está acima da raiva - esta que nos atinge em doses suportáveis (ou não) com tanta frequência. Mas que dá e passa, sendo assimiladas para que a vida não nos seja tão amarga quanto gostaríamos (?).

Tudo bem: haverá um momento em que ele, o tal do ódio, vai se manifestar visceral, envenenando o dono, primeiramente, e clamando por vingança sem tréguas. E aí cada um precisará aprender a contê-lo, tanto quanto possível e o mais próximo do necessário. 

Se inevitável, que tal algo assim: “Ódio - use com moderação”?

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