Nelson Rodrigues chamava o tipo de “desconhecido íntimo”: aquele sujeito que você tem certeza que nunca viu, mas que lhe trata como se fosse seu amigo de infância.
Sem comparar minha parca popularidade com a do mestre-provocador, eu coleciono algumas histórias com personagens em tudo encaixados no roteiro rodriguiano. E vos digo: tenho mais lembranças agradáveis ou engraçadas do que o contrário, com os íntimos que me pareceram desconhecidos.
Lembro, por exemplo, de um cara que era um pouco mais velho do que eu e com quem eu me encontrava sempre que fazia um “povo fala” no Centro da Cidade, ali nos arredores de onde foi o Cine São Luiz (deu saudade agora!).
A minha primeira recordação que tenho dele foi impactante, confesso: súbito, convidou-me para ser padrinho da sua filha... que iria nascer! Depois de muito argumentar em favor dos seus verdadeiros amigos, consegui dissuadi-lo da “homenagem”, por mais que isso fizesse bem ao meu ego ainda juvenil.
Tempos depois, no mesmo local, me deparei com o zeloso pai, sorridente e solícito, a me convidar para um churrasco em comemoração ao aniversário da sua cria, então já com cinco anos. Gaguejei até encontrar uma desculpa que me parecesse plausível para justificar a minha futura ausência. Não dava simplesmente para dizer a ele que eu sou um tímido contumaz, que não fica à vontade entre desconhecidos, por mais simpáticos que sejam.
A minha timidez, no entanto, já teve de enfrentar um dos meus mais marcantes dias de subcelebridade, ainda que não conseguisse disfarçar durante torturantes horas o meu crescente constrangimento. Foi numa cidade do interior, para onde viajei num feriado a convite de um – insistente – vizinho, que queria me apresentar a seus parentes próximos e outros nem tanto. Depois de muito driblar o sujeito pra lá de cordial, fiz um périplo pela cidade, casa a casa, loja a loja, com todos me tratando muito bem, sem notar que o rubor do meu rosto não era resultado do sol de Maceió.
Saí de lá, seguramente, tendo narrado uma pequena autobiografia para os meus anfitriões, e eles eram muitos, que ficaram sabendo os nomes de todos da minha família. As perguntas vinham em série, sem intervalos, e as respostas tentavam contemplar um pouco da curiosidade que não me parecia ter sentido.
Não posso reclamar: quase sempre os desconhecidos íntimos me tratam bem melhor do que eu mereço, imagino. Mas eis que surge “o chato”, que vive escondido em meio às multidões, esperando o momento de atormentar alguém que lhe pareça tranquilo demais. Deles disse Danton Trevisan (o quase vampiro de Curitiba):
“Livra-me dos chatos e Te agradecerei, oh Senhor. Rouba-me o emprego, planta-me em cada dedo a Tua unha encravada, mata-me de morte lenta e dolorosa, mas livra-me dos chatos. Há chatos demais, Senhor, nesta Tua cidade. Cobre a minha cabeça de piolhos, arranca os meus olhos das órbitas, Senhor, mas livra-me dos chatos.”
Na semana que passou me deparei com um espécime dessa espécie de quem desejo sempre distância – e bote distância nisso. Inicialmente, cruzamos na corrida: eu descendo o Murilópolis, ele subindo. Ao passar por mim, gritou: - Ricardo Mota! Respondi brevemente, como, aliás, era o possível ali.
Ao terminar a corrida, ato contínuo, comecei a fazer alongamentos, uma necessidade de que não abro mão. Eis que de repente, ouço a voz não convidada ao diálogo ao meu lado:
- Correr não é pra todo mundo, não, viu, Ricardo Mota?
Devo ter balbuciado alguma coisa, mas estava mesmo concentrado no que fazia. Ele retomou o seu ataque:
- Você corre há muito tempo?
- Há algum tempo.
- Devia ter começado antes. Eu corro há trinta anos.
(Silêncio.)
Andei alguns passos para frente e continuei alongando. Ele não se conteve e avançou, com as palavras sempre muito perto da boca:
- Você não me conhece, mas eu lhe conheço. Daquela livraria que ficava ali em frente à Embratel.
- Sim...
Em tom debochado, a voz mole, ele mandou ver:
- Eu acompanho o seu trabalho há muito tempo.
- Ok.
- Sabe o que eu acho?
(Sem esperar resposta)
- Acho que às vezes você não tem liberdade para dizer tudo o que pensa.
- Acho que você está se confundindo. Eu não tenho nem me dou a liberdade para dizer o que você quer ouvir.
- ??!!
Cumprimentei-o e me despedi. Ele ficou, imagino, processando o dito. Voltei para o lugar onde completaria a minha atividade física com a convicção de que os chatos existem para isso: roubar um tanto do seu tempo e do seu bom humor, até mesmo às primeiras horas da manhã.
Sem ter melhor definição para o tipo, vou me socorrer mais uma vez das diatribes de Millôr Fernandes:
“Chato – Indivíduo que tem mais interesse em nós do que nós temos nele”.

Ricardo Mota