Quem já conviveu com um alcoólico há de saber como esse mal ataca todo o derredor, arruinando a vida dos que mais o amam e são por ele amados: uma pessoa doente, na verdade, que há de conhecer nos momentos de lucidez o arrependimento pelo que não consegue superar. 

Deixo claro que aqui não está uma pregação moralista, até porque não tenho nem quero ter autoridade para tanto. Trato do excesso que, em qualquer coisa da nossa jornada pelo planeta, há de fazer sempre mal (até paixão sem freios e sem tempo de acabar).

Podemos lembrar, com algum romantismo até, de Vinícius de Moraes ou de Pixinguinha, notórios bebuns, mas que não sentiram a dor da solidão por serem o que eram. Mas a vida não há tratar apenas das exceções, até porque imagino que o álcool – sem tréguas – azedou a existência de tantos que conviveram com os dois grandes artistas brasileiros.

- Meu fígado foi feito de papel de seda. Não aguentou cinquenta anos de cachaça o fio da peste.

O lamento, acima, é de um grande poeta popular, que o ator e escritor Mário Lago tratou de apresentar ao Brasil, em 1975, ano da publicação de Chico Nunes das Alagoas. O “Rouxinol da Palmeira” morreu com 49 anos, e já era conhecido pelos amantes dos versos e da cachaça em Alagoas quando o também compositor (“Saudades da Amélia”, “Nada além”) encantou-se com seu talento, durante uma longa e oportuna permanência em Viçosa. Eram tempos da ditadura, que não gostava de Mário Lago; este nutria por ela os mesmos sentimentos.

(Chico também deixou registrado que “hoje em dia só sino é que não bebe, mesmo assim porque está de boca para baixo”.)

Se um triste fim teve Lima Barreto, o grande escritor negro e marginalizado, também vítima de alcoolismo, a história mais pungente de que recordo sobre o tema foi tragicamente escrita por Péricles de Andrade Maranhão, ou simplesmente Péricles, criador do inesquecível Amigo da Onça (todo mundo teve ou tem um, certo?). 

São inapagáveis aqueles traços que o artista levava para as páginas da mais vendida revista brasileira (na década de 1950, O Cruzeiro tinha uma tiragem superior aos 500 mil exemplares. Até hoje seria um recorde). O personagem, que eu já conheci em reproduções ou através dos sucessores do pernambucano Péricles, era o que se pode definir numa única palavra: um sacana.

Ardiloso, traiçoeiro, preconceituoso, impiedoso - o resto fica ao gosto do freguês. Numa das suas aparições, em dezembro de 1960 (ele "nasceu" em 23 de outubro de 1943 e viveu dezoito anos pelas mãos do seu criador), o Amigo personagem resolve cometer suicídio. Pulando de um edifício, com um envelope na mão, grita para uma assustada testemunha do “tresloucado ato”:

- Escuta, só de brincadeira eu escrevi, neste bilhete, que você foi o único culpado por este meu gesto.                                                                          

E quase só de brincadeira vivia Péricles de Andrade Maranhão. Nas noitadas, entre mulheres e garrafas, ficou conhecido no Rio boêmio. A destrambelhada alegria das farras cariocas levou o talentoso artista nordestino a sua desgraça: o vício do álcool, uma tragédia em qualquer família - inclusive na dele. Ele já carregava consigo um imenso peso na consciência pela morte do irmão Joel, a quem teria demorado a ajudar no tratamento de câncer na cidade carioca, e a culpa era potencializada pela bebida.

Péricles era casado com outra pernambucana, Angélica, a quem ele só chamava de Maria. Tiveram um filho - que se tornou profissional famoso na sua área, a neurologia -, a quem batizaram de Péricles Filho. Desde que o garoto veio ao mundo, Angélica deixou de acompanhar o marido nos bares e boates. Perdeu, o humorista, o seu freio para a eterna saideira. De quando em vez, para desintoxicar, internava-se em alguma clínica, de onde mandava os seus desenhos para a sede de O Cruzeiro.                                 .

E quanto mal lhe fez o copo! O homem que "era uma flor de pessoa, educado à exaustão", na definição do amigo e fã Ziraldo, virava ao extremo em seus períodos de crise. Tornava-se agressivo e/ou depressivo. Nada, entretanto, que lhe tirasse o humor tão necessário ao seu Amigo... Foi a bebida, com suas inevitáveis consequências, que levou o casal a se separar, deixando Péricles ainda mais solto na vida. E, celeremente, ele rumou para o precipício.

Às 14h30m do dia 31 de dezembro de 1961, Péricles resolveu aprontar - como o seu personagem - com os fãs e admiradores do Brasil inteiro. Sozinho, vestiu seu melhor terno branco, calçou os sapatos de verniz, deu um nó perfeito na gravata cinza-escuro e seguiu o roteiro que havia traçado para si pouco antes da virada do ano. Escreveu duas cartas: uma endereçada à mãe, e a outra “a quem interessar possa”:

- Sou profundamente sentimental e nunca passei essa época sem uma palavra de carinho. Apenas a solidão me levou a este gesto extremo. Talvez as coisas melhorem para todos.

Ainda não foi esta a sua despedida do papel e da caneta, seus amigos inseparáveis durante mais de vinte anos. Antes de se matar, escreveu num papel de embrulho a sua preocupação para com quem iria encontrá-lo naquele pequeno e então silencioso apartamento:

- Cuidado. Não risquem o fósforo. É gás. 

Péricles, está claro, não sabia ser o seu personagem.