Contam os da Viçosa que o filósofo e chorão Zé do Cavaquinho foi ao enterro de um velho conhecido, que havia providenciado a própria viagem ao nunca mais - por puro desgosto com a vida. Imagina-se que se um morto já é um acontecimento numa cidade do interior, um suicida é o evento social mais comentado pela população local por vários dias.
Zé do Cavaquinho se postou na fila de cumprimentos à viúva com um olhar de permanente indagação. Na hora das condolências, o autor de “Escorrego do urubu” não escondeu a sua curiosidade:
- Foi tiro?
- Não, foi veneno.
- É bom também.
Como ele ficou marcado entre os seus conterrâneos como um criativo frasista, indago-me se foi coisa pensada ou uma manifestação espontânea, sem medir as palavras, o cumprimento do Zé à viúva enlutada. Seja o que for, essa passagem ficou marcada na memória dos viçosenses, tornando-se impossível, nesses casos, saber até onde/quando foi o homem e o instante/lugar em que o mito tomou conta das lembranças.
Podem crer, leitores e leitoras deste espaço domingueiro, essa frase bem que poderia ter saído da minha boca, de forma impensada, destrambelhada, sem freios, em algum sepultamento. Tanto que me mantenho calado, o quanto posso, em cerimônias de adeus. Minha racionalidade, meu trato com as palavras, tudo me abandona nesses momentos e me deixa numa solidão que nem o morto ali suportaria (recordando e reverenciando Jorge Cooper).
Só encontro o silêncio mais intenso e agudo como solução para os meus desencontros com o jeito certo de falar a quem está atormentado pela dor - se genuína ou não. A chance de gaguejar, dizer bobagens, palavras e frases sem nexo, pode ser contabilizada entre os meus mais previsíveis vexames.
Lembro-me do sepultamento de um conhecido professor, muito e merecidamente respeitado, no Parque das Flores, já há alguns anos. Entrei na fila de condolências e pude observar que a viúva, ladeada pelos filhos, me identificou em meio a outros que esperavam para cumprimentá-la, e sinalizou que havia gostado de me ver ali. Tínhamos uma boa amizade social, eu, ela e o morto, apesar de não nos vermos com frequência.
Quando cheguei até ela, não consegui dizer nada que pudesse sugerir algum consolo, um sincero sentimento de dor compartilhada - até porque não era o caso. Na sequência, a viúva fez um breve discurso sobre as qualidades do marido que se despedia e disse um tanto sobre a longeva relação saudável entre ambos.
Travado, só consegui balbuciar um medíocre “sinto muito”, para decepção - revelada no olhar - da mulher madura, que aguardava, imaginei depois de alguns minutos de sofrimento psicológico, que fosse eu o orador que fecharia com “chave de ouro” sua homenagem póstuma àquele com quem dividiu/somou décadas de existência sob o mesmo teto, sobre a mesma cama.
Esse não foi meu único constrangimento em situações em que minha fala desaparece ou só aparece para me humilhar. E isso acontece não apenas em enterros, tenho de confessar, mas é neles que o quadro se agrava.
Cá para nós: quando a fatalidade atinge alguém por quem tenho afeto, amizade ou amor, o único jeito que conheço de manifestar minha solidariedade/empatia de peito aberto, sem ansiedade ou temor, é um abraço apertado, que não dê espaço nem mesmo para as palavras - inúteis ali.
Ricardo Mota