Desde há muito entendo que a violência, o sangue e a dor alheia atraem a atenção de pessoas de todos os gêneros, classes sociais e formações profissionais. Imagino, porém, que a gente mais ligada à arte, que aprendeu a vivenciar um tipo especial de prazer e encantamento, assume um comportamento diferente em relação aos temas, reagindo a eles de maneira diversa à atração primitiva que acendem. Não é o caso de ignorá-los, o que seria bobagem, mas de relegá-los a um compartimento onde não possam espalhar seus venenos.
Não se trata de ser melhor ou pior. Entendo, no entanto, que depois que a alma é sensibilizada pelo acúmulo e sucessão de doses de encantamento – como uma droga -, ainda é possível até achar beleza naquilo que provoca o pranto, mas nunca encontrar a felicidade no que fere mortalmente o outro. A arte, e só ela, creio, tem esse papel: o de libertar sentimentos e emoções que apenas o contato persistente com o que de melhor os humanos criam é capaz de despertar - e desanimalizar o bicho homem.
O que sempre me incomodou, e não me parece ser um mal facilmente curável, é o prazer que a maioria das pessoas sente com a dor alheia, a tragédia fora do círculo dos seus afetos. É como se ela, a tragédia, chegasse numa forma dissimulada, sabendo a alívio, por escolher uma morada longe dos corações que batem nos seus arredores.
A expressão alemã shadenfreude é muito precisa para definir esse gozo e/ou prazer com o sofrimento alheio, ainda que próximo fisicamente, mas distante afetivamente. Num julgamento mais severo, poderia ser entendido como uma “vingança” contra a vida, que espalha sofrimentos e infelicidade sem poupar ninguém. Seria , então, um instante de descuido da empatia, a que nem se dá às vezes pelo sumiço.
Quando me deparo com uma tragédia humana, independentemente da distância em que ela acontece, tento – o que nem sempre consigo – abster-me do julgamento de quem se vai, quando é caso, para mirar a dor de quem fica. E sempre haverá, eu sei, alguém para prantear uma ausência, até quando esta nos chega como um bem para um ambiente tóxico.
Por favor, eu trato aqui das pequenas tragédias do cotidiano, não dos crimes contra a humanidade. Estes continuam e continuarão a prosperar, porque a nossa espécie aprendeu a praticar a crueldade como algo indispensável para a própria sobrevivência. Depois? É só esperar que a consciência fraqueje e exerça a sua tolerância.
Acredito que esse encontro do prazer com a dor do outro chega, para a maioria de nós, de forma não racional. Aparece apenas como uma sensação íntima, quase imperceptível, muitas vezes contida e até reprimida - pela simples razão de que o sofrimento não é nosso.
Você há de ter tido – ou tem – no seu convívio alguém que identifica como o mais prolífico difusor dessas pequenas tragédias, uma espécie de anúncio fúnebre ou mórbido ambulante (e vamos lá: mesmo que seja uma boa pessoa, ao seu juízo). O aviso da ocorrência chega veloz, por voz ou mensagem, tão logo algo acontece que mereça a atenção do “gritador de notícias” (figura comum na Idade Média, com a diferença de que este era remunerado pelo que fazia).
É verdade que todos nós carregamos um pouco do personagem histórico, ainda que a diversidade também surja entre os espalhadores de “más-novas”. Melhor que a diferença ocorra no ninho das emoções humanas mais apreciáveis.
Ao fim e ao cabo, se a razão se dá a Caetano Veloso, quando canta que “a vida é amiga da arte”, desejemos vida longa à arte. E que ela nunca deixe de nos revelar o mistério do que é ser humano.

Ricardo Mota