(Por sugestão do poeta Diógenes Tenório Júnior, o blog republica esta crônica, postada neste espaço em 12 de outubro de 2008, então no TNH1.)
Já houve quem decretasse, sem nenhuma condescendência, a morte da canção. Vai-se a melodia, restando-nos apenas o consolo do ritmo - a marcação cada vez mais acelerada, assim como as coisas do mundo. "Coisas do mundo, minha nêga", diria Paulinho da Viola. E ainda que a anunciada catástrofe vingasse, nem ela arrastaria para o fundo do vulcão o mais elegante de todos os compositores brasileiros.
Paulinho da Viola será capaz de animar, envolvendo as gentes de todas as formações musicais, a melhor roda de samba; assim como consegue encantar os ouvidos mais refinados e exigentes da Nação. Este negro que nasceu - em 1942 - Paulo César Baptista Faria, entendeu que a música estava fadada a lhe correr entre os dedos aos quinze anos de idade. Vendo os acordes complexos do violonista César Faria, seu pai, que acompanhava, entre outros, Jacob do Bandolim, quis descobrir os caminhos do instrumento que se toca colado ao peito - coisa de amor definitivo.
Paulo César virou Paulinho da Viola graças ao tino de uma dupla maravilhosamente musical: Zé Keti (que o Brasil precisa redescobrir) e Sérgio Cabral (que descobriu um Brasil de tantos talentos.) O compositor citado, aliás, foi um dos responsáveis por levar ao público o moço tímido, amante do chorinho e do samba. Com seu cavaquinho, que toca - é verdade - sem o virtuosismo dos grandes do instrumento, o já Paulinho da Viola compôs a belíssima "Choro Negro", uma obra-prima do gênero, suave e triste como nos parece o autor - quase sempre.
Pois é, ele já sabia que os versos do poeta-mestre Vinícius de Moraes - Pra fazer um samba com beleza/ É preciso um bocado de trinteza/ Se não, não se faz um samba, não - dizem muito da dura e preciosa verdade dos grandes compositores, sendo um deles.
Foi misturando tristeza e desapontamento - primos em primeiro grau - que Paulinho compôs um dos seus clássicos - "Foi um rio que passou em minha vida". Havia feito, em 1968, com Herminio Bello de Carvalho (que maravilha de criatura)"Sei lá, Mangueira". A belíssima letra, que o sambista-chorão encontrou sobre a mesa do apartamento do parceiro, logo virou uma inspirada canção, fadada a se tornar um clássico ("... Em Mangueira a poesia/ Num sobe-e-desce constante/Anda descalça ensinando/Um modo novo da gente viver...").
De Hermínio, amigo de copo e de cruz, ouviu que a música faria parte de um show sobre a "verde-e-rosa". Qual não foi a surpresa de Paulinho ao sabê-la inscrita no Festival da Record, naquele ano. Não se sentiu traído, mas um traidor. Como explicar que o presidente da ala de compositores da Portela fizera tal exaltação à rival? Ganhou, ali, seus primeiros cabelos brancos.
(Os dois são protagonistas de uma história adorável de amizade e carinho. Num dos finais de tarde em que se encontravam para tomar chope e conversar, discutiram e romperam. Dias depois, aos prantos, Hermínio foi à casa de Maurício Tapajós, e, juntos, compuseram um pedido de perdão a Paulinho - Mudando de conversa/ Onde foi que ficou/ Aquela velha amizade?/ Aquele papo furado...- Concluído o samba, foram ao encontro do "muso", que não resistiu. Quem resistiria?)
A notícia sobre "Sei lá,..." o deixou abatido. Saiu a caminhar sem rumo pelas ruas do centro do Rio, até se deparar com uma vitrine. Lá estava o livro de Helena Cardoso - "Por onde andou meu coração". Paulinho sabia em que domínios andava o dele. Seguiu para casa já cantarolando os primeiros versos de "Foi um rio...". Serenou a alma e deu à Portela um hino que o Brasil de várias gerações - até de mangueirenses - sabe de cor. Em qualquer lugar no país onde um violão vibrar suas cordas, há de ter alguém a cantar o amor de Paulinho como se seu fosse.
(Jorge Meira, sambista da pesada nas rodas cariocas, participou da gravação da música com seu inconfundível "Ai, porém". Ficou, por isso, batizado desde então como Jorge Porém.)
Muitos são os brasileiros amados e respeitados; poucos serão tanto quanto Paulinho. O herdeiro maior do Mestre Cartola absorveu como nenhum outro o refinamento do marido de dona Zica. Quanto ao maior dos sentimentos, também ele nos ensinou, em tudo se compara à sua arte (com o auxílio luxuoso do poetaço Paulo César Pinheiro):
"Amar é um dom/ Há que saber o tom".