Corre um boato aqui donde eu moro
Que as mágoas que eu choro
São mal ponteadas...
A declamação é uma arte muito especial, com identidade própria, e nem todos os grandes atores e atrizes conseguem tornar suas as palavras dos poetas. Muitos dizem os versos, até com alguma interpretação, mas sem nos fazer acreditar que ali estão falando as suas dores, amores, crenças. Soam como alguém lendo uma carta – ainda existem cartas? – cujo destinatário é um desconhecido, e desconhecidas sendo as linhas garatujadas no papel.
Rolando Boldrin, sim, era um grandíssimo declamador. Tantas vezes ele me levou às lágrimas, tocado fundamente, ao interpretar, de frente para a câmera, em close, textos que ninguém haveria de dizer que tinham outro dono que não ele. O violão cumpria o seu papel, num solo limpo e tranquilo, fazendo a cama confortável para o poeta.
Boldrin se foi, na semana que passou, sem provocar grande alarde, apesar de mais de sete décadas de trabalho ininterrupto na arte brasileira. Sim, eu disse trabalho, porque ele foi um operário, qualificado, é verdade, a serviço da melhor criação nacional.
Vou sentir muita falta do seu programa matinal dos domingos. E lá se vão mais de quarenta anos desde que o Som Brasil – hoje, Senhor Brasil - foi ao ar pela primeira vez, em agosto de 1981. Curei muitas ressacas e até mau humor acompanhando, quase sempre na cama, jiboiando, o desfile de grandes artistas brasileiros, de fama ou sem ela.
Aliás, alguns eu nem conheceria se não fosse o nosso garimpeiro da melhor arte popular brasileira. Pinto do Monteiro, por exemplo, eu só soube da existência através de outro cantador que proseou nos palcos tão diversos do homem que sabia demais das coisas da nossa gente.
Por lá desfilaram grandes e desconhecidos músicos mineiros, de quem eu vim a me tornar “íntimo”, a exemplo de Paulinho Pedra Azul, Tadeu Franco, Consuelo de Paula, o paraense Nilson Chaves, o paraibano Vital Farias, os baianos Xangai, Elomar e Diana Pequeno, os paulistas Renato Teixeira e Mônica Salmaso - e tanta gente talentosa que encontrou nos palcos de Boldrin a primeira (às vezes, a única) vitrine para expor suas obras.
Lembro-me que a última vez em que vi Belchior - voz e violão - na televisão foi ao lado desse caipira que resolveu viajar “fora do combinado”, como ele costumava dizer. Ora direis: aos 86 anos, Ricardo? Pode até parecer muito, mas agora me pergunto como serão as minhas manhãs de domingo sem os causos e a alegria do Boldrin. Que fique anotado: para mim, ele foi sem avisar despedida e bem merece a reprimenda.
O ator, cantor, compositor e declamador era desses artistas que os outros artistas de alma acompanham e reverenciam. Não vou cair na armadilha de dizer que Boldrin não teve o reconhecimento que merecia - nada disso. A sua escancarada alegria em cada programa, a troca de carinho com os colegas que o visitavam no palco para uma prosa, um canto, um chiste, é um pacote de rara felicidade para qualquer pessoa, imaginem para quem viveu da arte e para a arte.
É muito pouco dizer que ele era um ícone da música caipira ou sertaneja – ainda que a de raiz, sem relação com o brega comercial, que tanto sucesso faz e que ocupa quase todos os espaços da mídia de massa. Mas imagino que conhecendo os da sua estirpe, no incansável e aprazível desfile domingueiro, essa oceânica plateia haveria de se refestelar com os quase anônimos e inspirados poetas e cantadores brasileiros, e foram miríades, que esse senhor encanecido, juvenil e de sorriso aberto apresentou ao povo brasileiro.
Mas, vide, vida marvada!
Eu aqui, no meu silêncio onde a música é presença soberana, fico a imaginar que só um grande poeta poderia definir tipos humanos como Ronaldo Boldrin. Vejam o que dele falaria, arrisco, Bertold Brecht, se ambos tivessem dividido um bom papo regado a pinga:
Há homens que lutam um dia e são bons, há outros que lutam um ano e são melhores, há os que lutam muitos anos e são muito bons. Mas há os que lutam toda a vida, e estes são imprescindíveis.
Vida longa a Boldrin!