- Ditadura, senhor ministro, é aquele governo em que a lei se confunde com a opinião do chefe do Poder Executivo e dos agentes da sua imediata confiança.
Esse é um pequeno trecho da carta aberta do advogado conservador e democrata Heráclito Sobral Pinto, o Doutor Sobral, ao então ministro da Guerra general Costa e Silva. Era o início, ainda, da ditadura militar – maio de 1964 –, que duraria vinte longos anos.
Foi um alerta sobre o que viria a seguir – e veio, para proveito de uns poucos e tristeza de muitos brasileiros. A minha geração sofreu menos do que a que nos antecedeu, com suas prisões, torturas e assassinatos nos porões dos órgãos de repressão. Seguramente, no entanto, não aceita a volta da infinita tristeza, da escuridão que escondeu as luzes de um país multicolor.
Ainda me vejo perplexo quando fanáticos de velhas e novas gerações, ignorantes da história do Brasil, pedem a volta da ditadura. O que significa, na prática, censura, intolerância, aniquilação dos divergentes. Se então, 1964, fanáticos, sádicos e aproveitadores encontraram a oportunidade de exercer os seus sentimentos mais baixos, não há de ser diferente na expectativa dos seus iguais 2.0.
Não dá para ter saudade daqueles tempos, como não teremos da quadra atual da vida brasileira, mas ao destacar Sobral Pinto, na abertura deste texto domingueiro, com seu conservadorismo civilizado, sinto-me mais à vontade para falar sobre Tancredo Neves, o presidente que não houve, mas que abriu a porta da esperança num país que ainda sangrava as dores da ausência da democracia.
Foi longeva a carreira política do mineiro de São João del-Rey, começando como vereador da sua cidade, eleito em 1935, e se encerrando antes que pudesse receber a faixa presidencial. Foi deputado estadual, em Minas, deputado federal, ministro do governo democrático de Getúlio Vargas, primeiro-ministro, em 1962, no breve período em que o Brasil foi parlamentarista – adiando o golpe de 1964, governador de Minas Gerais, senador da República e...
Moderado, sim, adversário pleno da ditadura desde a sua origem, que não se furtava em encarar um sururu à mineira. Logo após o golpe, em 11 de abril, o general Castello Branco foi “escolhido” pelo Congresso Nacional para ocupar a presidência da República. Teve até o voto de Juscelino Kubitschek (JK), mas não o de Tancredo. O jornalista Plínio Fraga registra em Tancredo Neves, o príncipe civil, o seguinte diálogo entre os dois:
“Tancredo, por favor, Castello é um militar diferente. É um intelectual como você. Já leu centenas de livros.”
“É verdade. Só que leu os livros errados.”
Eram o humor e a sagacidade desse político de fala mansa e firme, um homem correto, do seu tempo, que haveria de passar os vinte anos seguintes na oposição aos fardados.
Tinha umas tiradas de clara inteligência, demonstrando carregar um conhecimento cada vez mais raro entre os da atividade política, “sem tempo” para a curiosidade de leituras fora da área de sua atuação profissional.
Ele? Um refinado homem das letras e das ciências, tão vilipendiadas hoje:
- Os pardais que vieram da Europa acabaram com os tico-ticos. Não só os vencendo na competição pela comida, como chupando-lhes os ovos no ninho para ali botar os seus. O pardal é o melhor símbolo do capital estrangeiro.
Analogia sofisticada e impensável nos tempos de agora entre os seus. Sabedoria não haveria de faltar a Tancredo Neves, que fazia questão de exercer o seu pão-durismo ao receber aliados e desafetos em sua casa. Só lhes oferecia, quase sempre, café e água, “para que não se demorassem”. Até por isso, preferia visitar a ser visitado – assim escolhia com mais facilidade a hora de encerrar o papo.
Numa conversa de corredor, em 1976, com o deputado gaúcho Nelson Marchezan (Arena), exercitou sua fina e decidida ironia, ante a saudação amistosa do colega/adversário:
- Dr. Tancredo, nossos estados têm vocação para o poder. Já deram dez presidentes.
- É, mas os cinco mineiros entraram pelo voto direto.
Todo mundo há de lembrar que Tancredo Neves era avô de Aécio Neves, um personagem que a cada temporada fica menor na política nacional. Este ano, por pouco não perdeu a vaga que lhe restou na Câmara Federal. Responsável pelo início da carreira do neto, pouco antes de morrer - na sua viagem à Europa após ser escolhido presidente do Brasil pelo colégio eleitoral –, fez-lhe ouvir a preocupação do avô, de olhar arguto:
- Aécio, você tem de decidir: quer ser playboy ou quer ser político?
Hoje, já nos parece óbvia a escolha feita pelo herdeiro.
A escolha do ministério que ele não pôde comandar é um caso à parte na arte de fazer política, o resultado de um sutil jogo de esgrima que opunha dois adversários/aliados gigantes, que se respeitavam e até se gostavam: ele e Ulysses Guimarães. Aliás, convidado para a equipe, Ulysses, outro frasista que amava a “última flor do Lácio”, se saiu com esta:
- Eu sou um piano de cauda. Não caibo no ministério.
Tancredo rumou para a morte e Ulysses tornou-se o mais destacado signatário da Constituição Cidadã, a sua definitiva Penélope.
Como teria sido a presidência de Tancredo?
Eis uma resposta que ninguém há de ter. Mas especulo que indagado sobre o Brasil de hoje, bem que poderia responder com outra pergunta:
- Como chegamos tão baixo?
Democrata convicto que era, no entanto, Tancredo haveria de saber que, assim como alcançamos o fundo do poço, encontraremos a saída com valentia e alegria.