A jornalista Júlia Rocha escreve:
"Primeiro que Miguel era uma pessoa. Miguel era uma criança. Miguel era filho de uma pessoa. Neto de uma pessoa. Antes de mais nada, é preciso gritar aos quatro cantos que ele era o bebê da mamãe dele. Não sei como ela o chamava, mas ele com certeza era a razão de viver dessas duas mulheres. Da Mãe e da Avó. Para as pessoas brancas que não conseguem (ou não querem) enxergar o racismo estrutural que grita neste assassinato, eu quero falar. Por que é importante que vocês entendam que isso não é sobre a ilustre primeira-dama de Tamandaré. Isto é sobre o Brasil.
Eu preciso falar sobre o que antecede toda violência racista. Há algo que nasceu antes de Miguel, antes de Mirtes, antes de Sari. A DESUMANIZAÇÃO. Esta é a condição primeira. É a fundação sobre a qual se ergue uma sociedade desigual. Antes de abandonar uma criança, um ser humano de cinco anos, o bebê de uma mãe, o bebê de uma avó, no elevador DE SERVIÇO (é importante que se diga), assumindo ali os inúmeros riscos decorrentes daquele ato, uma pessoa precisa desconsiderar radicalmente a sua humanidade. Não importa se ele estava chorando, fazendo pirraça dentro do apartamento ou gritando pela mãe.
Mesmo que ele estivesse quebrando a casa toda, coisa que ele não estava fazendo, nada justificaria o fato de ele ter sido abandonado à própria sorte naquele elevador. Para que você, caro leitor, cara leitora, entenda o tamanho da perversidade envolvida neste fato, basta fazer comigo um exercício de imaginação. Você tem um filho ou um sobrinho nesta idade? Você se lembra de seu filho com cinco anos? Consegue se lembrar do jeitinho dele, de sua maturidade, de sua completa dependência dos cuidados de um adulto? Pense nesta criança de sua família. Nesta criança que você e os seus amam e cuidam. Você a colocaria num elevador sozinho? Um elevador de serviço, separado dos halls de entrada dos apartamentos por uma porta corta-fogo? Mesmo que o prédio não oferecesse os riscos de um andar sem proteção, mesmo que tudo fosse apenas corredores cheios de portas para apartamentos, você o abandonaria num elevador sozinho? Mesmo que não houvesse risco de morte e que todos os vizinhos fossem santos inofensivos? E se ele se sentisse desamparado? Amedrontado? E se ele se sentisse abandonado? E se ele chorasse por estar longe da mãe e da avó? Você me entende? Se sim, chegamos ao ponto.inguém faz isso com quem considera um igual, um ser humano, um cidadão. Eu me peguei pensando sobre o que eu seria capaz de abandonar dentro de um elevador como aquele e acredito que a maior parte de vocês que me leem até aqui pensam como eu. Nem meus cachorros correriam risco de um fim tão cruel. Eu não teria coragem de abandoná-los ali. E sei que são cachorros. Não os humanizo. O exemplo triste é só para dizer que no Brasil de Miguel, animais são muitas vezes mais respeitados que pessoas negras. Animais são humanizados enquanto pessoas negras são coisificadas (...)
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