Amor de pai e de mãe não tem preço. Essa frase dita incontáveis vezes por pais e filhos, e considerada por muitos uma verdade universal, tem sido cada vez mais questionada, principalmente no mundo jurídico. A falta desse sentimento, naturalmente associado ao ato de criar um filho, seja ele gerado no ventre ou no coração, pode ter preço sim, e bem salgado.
Embora não seja possível impor a alguém o sentimento do amor, a jurisprudência vem caminhando no sentido de considerar o abandono afetivo passível de danos morais, já que cuidar dos filhos é uma obrigação constitucional.
Para ficar em um exemplo, em abril deste ano, foi esse o entendimento da 1ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça da Paraíba: o abandono efetivo decorrente da omissão da mãe ou do pai é elemento suficiente para caracterizar dano moral.
Mudanças na lei
Paralelamente à jurisprudência, tramita desde 2015 na Câmara dos Deputados, um Projeto de Lei, já aprovado no Senado, estabelecendo que, pai ou mãe que deixar de prestar assistência emocional aos filhos, seja pela falta de convivência ou de visitação periódica, poderá ter que pagar indenização por dano moral. O PL 3212/15 é de autoria do ex-senador Marcelo Crivella (RJ).
Em entrevista ao CadaMinuto, a advogada Anne Caroline Fidelis de Lima explicou que “a Constituição Federal, no artigo 227, aponta como dever da família colocar a salvo a criança, o adolescente e o jovem de toda a forma de negligência. Quando os genitores deixam de exercer esse dever de cuidado, agindo com indiferença afetiva para com sua prole, ocorre o abandono afetivo”.
“Às vezes é difícil identificar a ruptura da relação afetiva, uma vez que o ato de amar é facultativo, mas o de cuidar é dever, logo o Direito brasileiro reconhece ampla e constitucionalmente o dano moral como instituto apto a reparar o que não é economicamente aferido, ou seja, mesmo que o amor não possa ser imposto, as consequências do abandono afetivo podem ser objeto de reparação. Mais que reparar a falta de amor, o pedido em questão visa reparar o descumprimento do dever de cuidado, inerente à relação pai-filho”, destacou a advogada.
Caminhos
A própria pessoa que sofreu o abandono emocional – ou, no caso de menor de idade, o responsável por ela - pode acionar a justiça para tentar reparar o dano. Anne Caroline orientou que, para isso, é importante buscar o auxílio de um advogado que atue preferencialmente na área de Direito da Família, sendo necessária a reunião de provas do abandono, inclusive testemunhais.
Quanto às punições previstas na lei, ela pontuou que “mais que reparar a falta de amor, o pedido em questão visa reparar o descumprimento do dever de cuidado, inerente à relação pai-filho. Tal cuidado deve ser compreendido de forma ampla, não apenas sob o prisma material”.
Lacunas abertas
A psicóloga Denyse Moura lembrou que os deveres dos pais não se esgotam com o pagamento de pensões alimentícias e nem com visitas esporádicas: “Com a separação, muitas vezes o casal não tem maturidade para a condução da criação compartilhada dos filhos e usa suas feridas para separar também as crianças do pai ou da mãe, como forma de punição”.
Para Denyse, ao negligenciar amor, atenção, a presença e a educação participativa, o pai ou a mãe impõe aos pequenos um sofrimento que eles ainda não têm maturidade para entender e cujas consequências podem envolver a perda da capacidade de superação de conflitos; baixa auto-estima; ansiedade em diversos níveis; fobias; Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC); Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (T.D.A.H); comportamentos inadequados; dificuldades de aprendizagem e social, entre outros sofrimentos.
“Sentimentos não podem ser medidos, nem muito menos ter preços estipulados, como se fossem mercadorias expostas em um corredor de supermercado, principalmente quando se trata de relações entre pais e filhos... Mas, se o pai ou mãe se excluem da vida diária do filho, passam a ser desconhecidos afetivos, deixando na criança uma lacuna aberta ao caminho inesgotável da frustração, do descontentamento, do desejo de ser amado” expôs a psicóloga.
Ela prosseguiu, frisando que as consequências do abandono afetivo são invisíveis aos olhos, mas profundas na alma e, dependendo da sua gravidade, incuráveis, uma vez que “o desamor, o desvalor e a desatenção são temperos severos para muitas desordens psíquicas e psicológicas que a criança vai alimentando durante a formação de sua personalidade e ao longo de sua vida”.
“É louvável ver que, juridicamente, muitos são os caminhos para subjetivamente compensar o filho abandonado e que a justiça esteja tentando encontrar uma forma de fazer com que os pais se responsabilizem nãos só pelo sustento material, porém nenhum valor monetário indenizará a falta de amor e os traumas, com seus prejuízos morais, afetivos, emocionais. Pai não substitui mãe e vice-versa, cada um tem sua importância e seu papel bem definido física e emocionalmente na vida dos filhos, isso é fato”, concluiu a psicóloga.
Marcas profundas
“Quando me separei minha filha tinha cinco anos. Tentei e tento diariamente suprir a falta do pai. Financeiramente a contribuição é mínima, mas o que me incomoda e o que sempre me incomodou foi a ausência da presença paterna, do convívio que deve existir entre pai e filha”, destacou Maria Eduarda (nome fictício), à reportagem.
“Da forma dela, calada e muito discreta, minha filha, hoje adolescente, sente e expressa o desconforto que a falta do pai provoca. O descaso e desamor dele pelas conquistas dela são notórios e isso a magoa muito. Tento suprir essa lacuna, mas numa relação de pais e filhos cada um tem seu lugar e, por mais que eu tente, sei que nunca poderei preencher essa falta dentro do coração dela”, desabafou a mãe.
“Não creio que uma indenização financeira reverta a ausência e falta de amor de anos, mas, se ela desejar mover uma ação por alienação emocional estarei ao seu lado, como sempre estive”, concluiu.