Dia das Mães: "Sim, Princesa! Era esse o nome dela"

08/05/2016 08:48 - Expedito Lima
Por Expedito Lima

Dona Aurita desceu do ônibus em silêncio quase absoluto. Segurava a neta pela mão e, mesmo com ela, não acreditava houvesse razão para o cometimento de muitas palavras. Por que "espantaria" para longe de si "uma das poucas coisas boas" que lhe "restaram"? Aquele imenso som de vazio, de certa maneira, tornara-se seu amigo, adornando de mais sobriedade as roupas pretas que passou a usar desde quando o destino lhe bateu à porta.

Numa sacola de plástico, trazia um pequeno pacote de biscoitos e uma garrafinha d'água; havia também velas, fósforos e flores - um ramalhete colorido, aliás, bem ao gosto da filha, sua maiúscula Princesa!

Sim, Princesa! Era esse o nome dela. Nunca alguém questionou a escolha. Talvez a aceitação geral se devesse à obviedade da motivação. Filhas, afinal, são o que são: invariavelmente princesas. Ricas ou pobres, feias ou lindas, a todas cogita-se o mesmo, e nobre, destino - suceder na realeza do lar, ainda que a mãe não seja exatamente rainha, não disponha de dinheiro ou súditos. Que nada disso importa realmente! Filhas são princesas! E a sua, ostentando uma linda natureza real, apenas tornara "próprio" algo que para todas as filhas já seria, naturalmente, "comum".

Não fosse, enfim, pelo dia das mães, aquele seria um domingo igual aos demais. Era a primeira vez, porém, nos cinco anos de vida da pequena, que Dona Aurita a levaria para conhecer "o parque onde a mamãe dorme". Sentia chegar a hora de a menina saber um pouco mais sobre a vida e o "sono" que, cedo ou tarde, cobre de certezas as pessoas que se vão; e de dúvidas as saudosas que remanescem. Se não imaginava o jeito de dizer, se não sabia como dizer, ao menos intuía que o contato da criança com o "jardim" daria, sozinho, explicações capazes de lhe fazer algum sentido; quando não ali, naquela primeira hora, ao menos depois.

--- Vovó, onde ela está?

--- Aqui! Sua mãe está dormindo. Você não a vê, porque todas as pessoas que dormem neste lugar ficam guardadas, como se estivessem num apartamento secreto ...

--- Esse aí é o nome dela?

--- É!

--- Princesa dos Santos Silva, minha mamãe!

A frase foi pronunciada à boca miúda, em meio a dois ou três sorrisos de reconhecimento, enquanto dedos gordinhos e iletrados exploravam o relevo da fria pedra de mármore.

--- Queria mesmo era ver minha mamãe ...

--- Eu sei que sim, mas não será possível!

Passaram-se, então, alguns segundos de descoberta: a criança admirando a lápide, a avó olhando a criança; a pequena tentando entender como um apartamento secreto poderia ter sido construído naquele lugar, daquele jeito; a velha pedindo a Deus que a imagem fosse suficiente, já que não teria palavras que oferecesse às questões de quem perdeu quase todos os agasalhos -- e justo no dia em que, nascendo, se expôs ao frio polar que grassa no mundo.

--- Minha mãe é uma princesa, vovó! Será que um príncipe não vem acordá-la?

--- Não existem príncipes, Paulinha. Eu já pedi para tirar essa invenção de sua cabeça.

A menina fez que sim, desviando o olhar para outra direção. Pareceu aceitar a resposta, como se princesas pudessem viver num estranho mundo sem príncipes. Teria sido esta a história de sua mãe, certamente, antes de dormir seu "sono" mais profundo.

Exaurida a contemplação, a pequena Paula caminhou até um brevíssimo banco de cimento; por lá, libertou os pezinhos, pendulando-os no ar enquanto cogitava as próprias sandálias de borracha, já largadas sobre a grama. Feliz - encantada e feliz -, repetia o nome da mãe como se, tendo-a finalmente conhecido, a chamasse para junto de si, pacientemente:

--- Princesa dos Santos Silva ... princesa...  minha mãe é uma princesa que dorme ...

Dona Aurita a olhava, amargurando junto à memória da filha o que estava por vir. Sempre algo está por vir, mesmo depois do fim. Que futuro terá alguém sem passado? Qual destino terá uma criança que jamais teve pai, que perdeu a mãe sem sequer tê-la conhecido? E depois que partisse, como ficariam as coisas? Que vizinhos iriam olhar por sua neta, à falta de qualquer parente que pudesse fazê-lo? Quem seria por ela, no fim das contas, quando estivesse largada à própria falta de sorte?

Perguntas não dialogam com o nada. O vazio tem sempre um poder retórico desconcertante. Era preciso mudar de assunto. Acendeu as velas, então, sem pensar mais no amanhã. Estava novamente acompanhada do silêncio-adorno que combinava com seu vestuário preto. Seria preciso fazer orações mudas e, nelas, resumir suas expectativas.

Pediu que Deus, assim, tivesse piedade da alma de Princesa e misericórdia do futuro de Paula. Rogou que a Providência lhe garantisse, como avó, mais alguns anos de vida. Não muitos, que também já sentia a necessidade de "dormir". Mas apenas o suficiente para ensinar à neta, na perspectiva de ser mulher e mãe um dia, a única lição válida na luta pela sobrevivência, e que ela aprendera a muito, muito custo: "príncipes, na verdade, até podem existir, mas a vida não é para princesas que esperam príncipes".

(...)

No fim da tarde, não havia mais velas, fósforos, biscoitos de maisena, água ou lágrimas. O "parque" estava vazio. Os passos da velha, dirigidos ao portão que lhes protegeu do mundo nas últimas horas, eram mais lentos, porque carregava a neta no colo. Aquele tinha sido um dia cansativo. E a pequena já dormia tranquila, como um pedra. Seria assim dali em diante. Até, pelo menos, a manhã seguinte ...

Recife, 08 de maio de 2016.

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