Ninguém morre apenas uma vez.

03/05/2016 08:32 - Expedito Lima
Por Expedito Lima

Lendo, hoje, as notícias sobre política, lembrei-me dele!

Tonho saiu de casa depois que se envolveu com outra mulher. O troço foi rápido e fulminante. Em menos de meio metro de sonho, no espaçar de duas ou três piscadelas, o homem já estava, como dizem os moços, de quatro.

Casado com Maria, três filhos pequenos, nada disso lhe pareceu bastar; e o cidadão resolveu, naquele ensolarado 1º de janeiro, que seria hora de fazer seu adendo às estatísticas da pós-modernidade, entrando de cabeça na classe de pessoas que, embora um dia tenham passado a ser, já não mais continuariam sendo, conquanto ainda fossem.

Esquisito, não? Mas são assim os maritais casados-e-separados. Seres estranhos, incompreensíveis, frequentadores de um mundo próprio, absolutamente inalcançável aos ordinários de nascença, que casam, vivem e morrem juntos, ainda que isso, claro, não garanta a felicidade de ninguém.

Pois foi redesfrutando daquela condição juvenil, como se exibisse novas espinhas no rosto, que Tonho danou-se a consumar um genuíno cardápio de irresponsabilidades, praticando com sua acompanhante -- diuturna e noturnamente, segundo sugere o idioma oficial da presidência da República -- toda sorte de atentado ao pudor.

Ah, o calor do fogo novamente! Não houve mísero canto da cidade que tivesse sido poupado de um sussurro, um gemido: esquinas se dobraram de vergonha; postes, antes apenas concretos, ficaram também eretos, manifestando detida atenção, digamos, à simetria das formas; manequins perderam a cabeça nas vitrines, decapitados de vergonha:

--- Isso aqui, ó, nem no canal 150!

Eis o que falavam depois de cada nova performance amorosa, entre risos e juras de amor eterno. De fato, desse o que desse, houvesse o que houvesse, lá estavam eles, colados, intrincados, coisando-se à mais unitária das unidades corpóreas.

Sobre a ex-esposa, Tonho pouco dizia. Que não tinha tempo a desperdiçar. Nem vontade. No máximo, permitia-se, a quem perguntasse, balbuciar um brevíssimo "deve estar por aí, não sei". Lembrava-se dos filhos, mas pouco, na exata medida das sobras financeiras que lhe ocorressem, se ocorressem. Sim, senhor! Que o gasto exigido em novas paixões sempre é alto. E seu salário de operário nunca foi exuberante, apesar dos dissídios coletivos já vividos em tantas primaveras sindicais.

Tudo corria - para ele - bem, até que o dinheiro sumiu da praça, drenado aos confins da maior secura. O resto já se imagina. Sem crédito ao povo, diminuíram as vendas do comércio e, por tabela, o faturamento com o qual empresários adimpliam salários e garantiam empregos. Muitos empregos. Dezenas. Centenas. Milhares. Tudo foi se derretendo, compondo um saldo para lá de triste: incontáveis postos de trabalho perdidos, muitos amores de aluguel desfeitos e pelo menos um coração destruído - justamente o dele.

O fato, porém, nem foi a nova separação. Que a finitude das coisas, sobretudo dos amores de ocasião, já andava meio estampada por aí, não chegando a ser surpresa mesmo para inocentes como o Tonho. Danado foi o sujeito pensar em voltar para casa e encontrar seu antigo posto-de-não-trabalho ocupado por outro operário atencioso, grande amigo seu, muito esmerado em dar tratos à terra que ele, por vontade própria, deixara arrasada e abandonada:

--- É como morrer depois da morte!

Repetia isso todos os dias, nos bares em que passou a andar, até morrer novamente, agora de verdade, sob aplausos de bêbados notórios, vários deles consternados na hora do adeus:

--- Tchau, querido!

Não sei, meu caro, se existe vida após a morte. Mas posso lhe garantir algo: ninguém morre apenas uma vez. E venho, cá comigo, ponderando que o partido no governo vai concluir a mesma coisa depois que, largando o poder, quiser voltar ao comando dos sindicatos e das bases que perdeu, justamente por ter preferido viver a luxúria de um amor bandido, reles locatário de seu afeto. Estará fundado, então, oficialmente, o PT, "Partido do Tonho", o bom brasileiro que nos legou a doutrina das muitas mortes.

Recife, 03 de maio de 2016.

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