"Procurei ver como todos eles falavam em público. Hoje, o escritor é uma figura que tem um aspecto de performance", afirma o curador da 12ª Festa Literária de Paraty (Flip), Paulo Werneck. Ele não tem uma aposta sobre qual, ou quais, dos 47 convidados tem maior potencial para agradar a audiência do evento, que começa nesta quarta-feira (30) e vai até domingo (3). Mas sugere uma receita: quem quiser aplausos deve, antes, provocar risos.

"A maioria dos autores não é formada por humoristas, mas eles são muito bem-humorados, espirituosos", descreve Werneck em entrevista ao G1, por telefone.

"O humor, a ironia e a intenção cômica são, muitas vezes, uma característica comum a eles." Estreante na função, o curador atribui ainda esse viés cômico da programação ao homenageado da vez: o jornalista, escritor, desenhista, dramaturgo, tradutor e (evidentemente) humorista Millôr Fernandes (1923-2012).

Mas ele lista outras duas características essenciais do Flip 2014. Primeiro, o "multiculturalismo, uma presença de nacionalidades muito diversas". Para justificar a observação, cita países como Rússia, Índia, Nova Zelândia "e o próprio ianomâmi" – no caso, o líder indígena Davi Kopenawa, que participa de uma mesa sobre a Amazônia.

Werneck também aponta que alguns debates são sobre temas cotidianos, e não propriamente literários. Assim, assuntos como arco narrativo, personagens bidimensionais e uso do discurso indireto livre devem eventualmente ceder espaço para tópicos como obesidade e questões ambientais. "Existe um traço nessa programação, que é o de trazer discussões com a vida real das pessoas", observa Werneck. Leia, a seguir, os principais trechos da conversa.

G1 – No anúncio da programação, você falou que o 'tom foi dado pelo Millôr'.  O que isso significa na prática?
Paulo Werneck – A maioria dos autores não é ser formada por humoristas, mas eles são muito bem-humorados, espirituosos. O humor, a ironia e a intenção cômica são, muitas vezes, uma característica comum a eles. São escritores muito ferinos e fazem uma contestação bem-humorada ao poder.

G1 – Tem alguma aposta de convidado que deve fazer sucesso com o público?
Paulo Werneck – Todos são apostas, porque procurei ver como todos eles falavam em público. Hoje, o escritor é uma figura que tem um aspecto de performance. Procurei observá-los falando. E acho que esse aspecto do bom humor vai dizer muito. Tem o [mexicano] Juan Villoro, o [israelense] Etgar Keret... Mas espero que todos conquistem o público.

A gente não pode se dar ao luxo de gastar nenhum convite à toa. Todos têm de render plenamente, se mostrarem. Procurei me informar, fazer uma rede de contatos com pessoas que têm uma sensibilidade diferente para indicar. Quando você tem três pessoas de fontes diferentes, perfis diferentes, recomendando o mesmo ator, aí você tem um tiro quase certo.

G1 – Qual a relação entre essa 'crítica ao poder' e o Millôr Fernandes?
Paulo Werneck – A gente está apresentado o Millôr como uma grande pedra, de todas as formas – tanto na esfera cultural, como política, jornalística... O [jornalista britânico] Glenn Greenwald, por exemplo, está questionado o império americano. O [líder indígena Ianomâmi] Davi Kopenawa critica o modelo de desenvolvimento brasileiro, essa ênfase no agronegócio. Tem a [jornalista argentina] Graciela Mochkofsky e o [jornalista americano] David Carr, que falam sobre mídia e poder. O Michael Pollan é um ativista contra a indústria da obesidade e contra a agricultura extensiva, destrutiva...

São faces do poder do XXI que estão sendo enfrentadas por intelectuais. O próprio [escritor russo] Vladímir Sorókin – ele é um opositor do Putin. Na Rússia, há algo muito parecido com ditadura, como o Millôr enfrentou no Brasil.

G1 – Muitos dos convidados são autores de não-ficção. Por que essa opção?
Paulo Werneck – É um equilíbrio [entre ficção e não ficção] igual dos anos anteriores. A gente faz um contagem, embora não tenha obrigação. Mas é natural, porque o Millôr era jornalista, gostava de se dizer jornalista. Acho natural que jornalistas estejam presentes.

Jornalismo é um assunto atual, seja na crítica, seja nos novos tipos de jornalismo que estão aparecendo, com essas experiências não corporativas. E também tem casos como o do [jornalista americano] Andrew Solomon, que investiga aspectos humanos. Acho que existe um traço nessa programação, que é o de trazer discussões que têm a ver com a vida real das pessoas. Não são discussões abstratas.

A questão da alimentação levantada pelo Michael Pollan, por exemplo, é algo que todo mundo enfrenta: como viver numa grande cidade comendo bem, sem comer coisas industriais. Já o Glenn Greenwald mostrou que se você é um cidadão comum, suas mensagens estão sendo armazenadas. E a própria questão da Amazônia – a gente tá vivendo a mudança climática.

G1 – Existe a preocupação de colocar na programação algo sobre o momento atual do Brasil? Em 2013, houve mesas sobre as manifestações de junho.
Paulo Werneck – Tem isso, mas é uma consequência do próprio país, que está enfrentando um momento muito politizado. No ano passado, a Flip respondeu a isso com mesas extras.

G1 – As eleições de outubro estão na pauta?
Paulo Werneck – As eleições vão acabar aparecendo de uma forma ou de outra nos debates. Estamos em época de pré-eleição – a plateia é muito politizada e os escritores também. Não senti necessidade de marcar um debate eleitoral, por exemplo, acho que isso vai ocorrer, de qualquer forma.

Às vezes, a função da Flip é muito mais trazer novas perspectivas de debate político do que apenas abordar todos aqueles debates que já estão acontecendo. Só de levar o [antropólogo carioca] Eduardo Viveiros de Castro, o Davi Kopenawa, que são críticos do que está acontecendo na Amazônia hoje, isso uma forma de interferir no debate intelectual brasileiro. E de uma perspectiva não partidária. Não estamos querendo uma discussão partidária, e, sim, trazer novas perspectivas.