Da série: não é fácil ser mulher e negra. Uma ótima matéria da jornalista da Carta Capital estabelecendo um riquíssimo espaço diálogo para que muitos estudios@s das academias das Alagoas adentro e Brasil afora possam caminhar além de sua zona de conforto e “descubram”que o apartheid do racismo é um dos fatores que leva tanta gente para a periferia da história, inclusive estabelecendo a condição econômica da pobreza negra..
O racismo no Brasil promove um apartheid social incomensurável, abrindo fossos entre o que é possível e as oportunidades roubadas. Pardos e negros constituem a maioria da população brasileira, 51,2% e mesmo assim depois de quatro séculos de humilhação e subalternidade, ainda temos que lutar a ferro e a fórceps pelo nosso direito de cidadania plena.
O racismo no Brasil veste a roupagem dos “doutas” autoridades como do ex- democrata, senador Demóstenes Torres, expulso recentemente do partido, que afirmou em um rio de frases inconsequentes , feito uma cachoeira coalhada de imbecilidades que os estupros praticados durante o escravismo eram consensuais e responsabilizou os negros pela própria escravidão,
Não é fácil ser negro no Brasil miscigenado. Com a palavra a doutora Juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca do Rio de Janeiro, Ivone Ferreira Caetano:
‘Ser negra e mulher é muito difícil no Brasil’
Ivone Ferreira Caetano é uma mulher de 68 anos, casada e há 42, ela é a Juíza da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Comarca do Rio de Janeiro. Uma figura polêmica lutadora e inovadora, defensora de assuntos que a tornam constantemente centro de polêmicas judiciais.
São delas alguns exemplos de decisões que irritam parte retrógada da sociedade e alguns juristas acomodados.
Segunda ela, um dos problemas que vem encontrando é o do reconhecimento a crianças, principalmente africanas no Rio. Quando ela toma conhecimento de algum deles – a perambular pelas ruas do centro da cidade – dá documentos especiais, sejam bebês, crianças ou adolescentes. Essas crianças africanas não aparecem em estatísticas brasileiras por entrarem no Brasil ilegalmente, fugindo de suas terras natais. Ela diz como resolve: reconhece as crianças oficialmente como estrangeiras a viver no Brasil e elas passam a ter direitos como saúde, educação e proteção da sociedade, tudo com base na Constituição e o Estatuto da Criança e do Adolescente. É quando esses garotos – que chegam, na maioria dos casos, sem responsáveis, em navios principalmente – passam a existir como seres humanos no Brasil.
Pelos mesmos motivos, que também irritam alguns setores, a magistrada manda tirar das ruas crianças que usam tóxicos e as interna em abrigos para tratamento.
Quando defendem que ela não pode decidir sobre o direito de ir e vir, ela lembra: o direito à vida desses jovens é superior a tudo.
E assume sua responsabilidade: "Algum pai que pode pagar internação e tratamento a seu filho o deixaria abandonado ao tóxico?" Na falta de responsáveis, o Estado tem essa responsabilidade e as crianças são encaminhadas para instituições que cuidam de viciados.
Ela também já mandou adolescentes grávidas e viciadas para tratamento obrigatório, garantindo a perfeita formação da criança.
Na área de adoção, Ivone Caetano também provoca celeumas. Lembra que, quando uma criança está para ser adotada, a Justiça faz perícia para saber se o interessado tem condições financeiras, psicológicas para criar um filho sadio. Então, a pessoa, tendo 16 anos mais que a criança, se é casada, solteira ou homossexual, não interessa para a juíza. Importante é que o adulto esteja apto a dar boa criação ao adotado.
Por essa linha vanguardista de pensamento, e com experiência de vida de quem passou profissionalmente por subúrbios do Rio e dá conferências no exterior, Ivone Caetano sempre tem dificuldades. Em vez de ter sentenças recorridas, ela já recebeu 19 representações – termo jurídico para um ato de repreender ou punir o juiz – "todas indeferidas e arquivadas", lembra ela.
Ser negra e mulher é difícil no Brasil
Antes de se formar em Direito, Ivone Ferreira Caetano trabalhou no IBGE, na Secretaria de Finanças da Prefeitura e no Banco Boa Vista. Depois de formada, tentou – por nove vezes consecutivas – passar em concurso público ligado a sua profissão. Como o cargo pretendido era o mesmo, um dia ouviu de um dos examinadores, quando estava na terceira fase do teste: "menina, para de tentar entrar aqui: você é mulher e negra. E eles não gostam disso aqui".
Desde que ouviu essa afirmação – sentida, mas nunca verbalizada – Ivone Caetano entendeu que precisaria ter sempre sua autoestima elevada e enfrentar, sem medo, sua vida, como mulher e negra, numa profissão elitista. Passou assim por todas as esferas do Judiciário até chegar ao cargo que ocupa hoje.
Sorrindo, com ar doce de quem cuida de crianças – e velhos – ela diz que sempre teve dificuldade em tudo que fez. Com cabelos curtinhos, olhar profundo de quem sabe o que está dizendo, desabafa, sem revolta: "ser negra e mulher é muito difícil no Brasil. Tudo é muito sutil e quem não tem traços do Daomé não sabe o que isso representa", diz ela, brincando e mostrando seu nariz que tem formato típico da região africana de onde vieram inúmeros escravos para o Rio de Janeiro. Com humor, ela reforça: "E nem eu sei meus ascendentes são de lá".
Essa figura respeitada por importante parte da sociedade e rejeitada em parte do Poder Judiciário, chegará a galgar o cargo de desembargadora, como já é de justiça e direito? Sendo progressista, mulher e negra? Ou tudo continua como aconteceu nos concursos de 40 anos atrás?
Com esta curiosidade na alma, lanço minha esperança de o Rio ter, a curto prazo, a primeira desembargadora negra no Tribunal de Justiça, neste país hoje dirigido por uma mulher e tem outras mulheres em postos-chave da República.
Fonte: Carta Capital