No dia 7 de julho de 1990, a música brasileira ficou mais triste e sem graça. Há exatos 20 anos, Cazuza perdeu a dura batalha contra a Aids, guerra esta acompanhada por todo o Brasil. Primeiro artista a assumir publicamente ser portador do vírus HIV, ele deixou uma obra que rendeu a ele a alcunha de o maior poeta de sua geração, a dos anos 1980, época de ouro do rock nacional.
Lucinha Araújo, 72 anos, se tornou uma espécie de porta-bandeira do filho. Em vez de ir aplacar sua dor no divã do analista, lançou o livro Só as Mães São Felizes, sobre o filho, em parceria com Regina Echeverria, e resolveu criar, em outubro de 1990, a Sociedade Viva Cazuza, instalada no número 39 da arborizada rua Pinheiro Machado, em Laranjeiras, no Rio.
No local, 24 horas por dia, 22 crianças e adolescentes soropositivos recebem cuidados, além de 150 adultos que passam por lá uma vez por semana. Sem apoio governamental, a casa sobrevive dos direitos autorais do cantor e compositor, que se escassearam nestes tempos de pirataria, e de doações de amigos e de artistas.
Foi de seu escritório na Viva Cazuza que Lucinha Araújo conversou com a reportagem do R7 sobre os 20 anos de saudade de seu único filho. Saudade esta dividida com todo um país. Leia a entrevista.
Colaborou Pedro Henrique Feitosa, estagiário do R7
R7 - A senhora não se assusta ao pensar que já faz 20 anos que o Cazuza se foi?
Lucinha Araújo – Realmente passou muito depressa. Mas para mim o sofrimento é o mesmo. Um, dois, cinco, 20 anos, não muda nada. Mas, realmente, levei um susto ao ver que já se passaram 20 anos...
R7 – É muito difícil para a senhora enfrentar o dia 7 de julho?
Lucinha – É um dia como outro qualquer, porque todos os dias é dia de relembrar meu filho, mas, nessa data, mando sempre celebrar uma missa. O pior dia foi no qual soube que ele estava doente. E seguiu-se muito sofrimento até o dia da morte dele. Mas prefiro esquecer os dias ruins e lembrar dos bons momentos que a gente passou junto, porque a gente foi muito feliz. Senão, não tinha sobrevivido.
R7 – Qual foi um momento inesquecível ao lado de Cazuza?
Lucinha – O mais lindo foi o dia do nascimento dele [4 de abril de 1958]. Sou de uma família só de mulheres, minhas irmãs só tiveram filhas, e meu marido queria um homem. Foi um momento de grande felicidade, não só por ele ter nascido homem, mas por ter sido mãe, porque, depois dele, eu nunca mais consegui ter outro filho. Cada vez mais eu valorizo esse momento. Fui uma pessoa abençoada por ter tido esse filho e sempre agradeço a Deus. Pena que durou pouco.
R7 – A senhora sente a presença dele ao seu lado? Em quais momentos?
Lucinha – Todo santo dia eu sinto que o Cazuza está comigo. Ele me ajuda e vela por mim. Aprendi muito mais com ele do que eu ensinei, não tenho vergonha nenhuma de dizer isso. Penso nele 24 horas por dia.
R7 – O que de mais importante Cazuza deixou para o Brasil?
Lucinha – O legado dele não foi só o das belas canções. O maior legado foi de coragem. Foi o exemplo de se declarar soropositivo enquanto milhares se escondiam. Ele foi a primeira pessoa famosa a fazer isso. Foi um caso de extrema coragem. Fiquei muito orgulhosa dele.
R7 – E para a senhora como mãe?
Lucinha – As pessoas falam para mim “poxa, como a senhora é corajosa”. Eu digo: meu filho foi exemplo, eu não poderia ser diferente. Tenho 20 anos a mais do que ele. Se ele não teve medo quando estava perdendo a coisa mais importante para um ser humano, que é a vida, também não poderia ter medo. Tenho prazer de ouvi-lo, ver as pessoas cantarem Cazuza, lerem as poesias dele. Porque ele era tão à frente de seu tempo que só agora as pessoas estão entendendo muita coisa que ele escreveu.
R7 – Se Cazuza ainda estivesse por aí, com 52 anos, o que a senhora acha que ele estaria fazendo?
Lucinha – Tenho certeza de que ele estaria fazendo sucesso e lançando alguma coisa nova, porque ele sempre foi de vanguarda. É uma pena o que aconteceu com ele. Não fui só eu que perdi meu filho. O Brasil perdeu um grande homem e um grande artista.
R7 – Como a senhora mata a saudade do Cazuza?
Lucinha – Antes, eu via muito vídeo, mas agora dei uma parada. Escuto muito as músicas dele. Também vou ao cemitério. Sei que não é ele que está lá, mas é uma referência. Nesta quarta, é dia de ir lá. Nunca deixo de ir no 7 de julho. O Cazuza me fez melhorar como ser humano. Só me deixou bons exemplos. As coisas ruins eu esqueço. Foram muito mais coisas boas do que ruins.
R7 – A Sociedade Viva Cazuza também completa 20 anos em outubro. Por que após a morte dele a senhora resolveu cuidar de crianças soropositivas?
Lucinha – Essa doença atinge a família, os vizinhos, a cidade, o país, o mundo. E não tem cura ainda 20 e tantos anos depois. O que me fez tratar dessas crianças foi que elas não tiveram o poder financeiro que nós tivemos. Porque demos tudo que ele precisou, apesar de na época não ter os remédios que têm hoje. Em vez de ir para o analista, resolvi cuidar dessas crianças. Resolvei trabalhar, que é algo que dignifica o ser humano. Não me arrependo dessa decisão.
R7 – A Viva Cazuza passa por dificuldades financeiras?
Lucinha – Nosso maior problema é justamente o financeiro. Porque os direitos autorais de Cazuza, que antigamente eram muito maiores, não estão dando para cobrir nem a terça parte das despesas. Vamos atrás de doações, eventos, shows que artistas promovem para a gente. Porque a gente está com muita dificuldade de ter apoio governamental.
R7 – Qual a importância que o filme Cazuza – O Tempo Não Para, da Sandra Werneck e do Walter Carvalho, teve para o contato das novas gerações com Cazuza?
Lucinha – Foi um filme muito honesto. Faltou um pouquinho da poesia dele, mas como foi o filme mais visto no ano de 2004, ele trouxe muita renda para a Viva Cazuza e mostrou quem foi meu filho ao público jovem. Ele mereceu ser homenageado no filme. E os diretores fizeram muito bem isso.
R7 – Quando a revista Veja fez aquela capa com Cazuza [em 26 de abril de 1989, que trazia o cantor magro e abatido pela doença com a seguinte manchete “Cazuza – Uma vítima da Aids agoniza em praça pública”], o texto decretou no último parágrafo que a obra dele não duraria após sua morte. Como a senhora se sente vendo Cazuza tão falado, tão cantado e tão querido 20 anos após ter morrido?
Lucinha – Eu nunca tive dúvidas disso. No dia em que ele leu aquilo, a única coisa que ele se queixou foi: “puxa, mamãe, eu não me importo de tudo que eles falaram de mim, mas dizerem que a minha música não vai durar depois da minha morte foi a coisa que mais me ofendeu”. Esses 20 anos são uma resposta, um tapa na cara a essa imprensa marrom.
R7 - De quais músicas do Cazuza a senhora mais gosta?
Lucinha – Depende do meu estado de espírito. Cada dia eu gosto de uma diferente. Mas gosto de Um Trem para as Estrelas, que ele compôs com o Gil para o filme do Cacá Diegues, O Tempo não Para, Codinome Beija-flor, Solidão que Nada... No meu celular eu coloquei Exagerado, porque começa “amor da minha vida, daqui até a eternidade”. Não foi feita para mim, mas eu faço de conta que foi. “Nossos destinos foram traçados na maternidade”, então eu faço de conta que é comigo.