No atletismo, há os esportistas que correm os 100 metros rasos e os maratonistas, que correm grandes distâncias. A preparação de cada um deles é diferente para as distintas modalidades. Um precisa de mais explosão e o outro, de mais resistência. O cantor de trio elétrico tem um treinamento parecido com as cordas vocais para conseguir encarar até oito horas de trabalho no carnaval de Salvador.

Já foi o tempo em que se aquecia a voz com conhaque e limão antes de cantar. O profissionalismo atual com que a voz dos cantores da Bahia, em específico, é tratada vai desde a alimentação, muita lição de casa com exercícios vocais e, principalmente, o cuidado logo após a apresentação.

“O trio elétrico é uma coisa absurda, que não existe em lugar nenhum do mundo. São até oito horas cantando sem parar e com o sol de Salvador na cabeça. É um grande desafio para o cantor. Já conversei com profissionais da minha área que atuam com atores e cantores da Broadway e eles ficam espantados em como os nossos artistas têm de se apresentar no trio elétrico”, disse a fonoaudióloga Valéria Leal.

Ela trabalha bem mais do que as oito horas que um cantor de trio elétrico chega a ficar cantando no carnaval baiano. A rontina de Valéria inclui cantores como Carlinhos Brown, Margareth Menezes, Alinne Rosa (Banda Beijo), Tomate, Léo Santana (Parangolé) e Larissa Luz (Araketu). “Chego a trabalhar de 16 a 18 horas por dia durante o carnaval.”

A também fonoaudióloga Maria Regina Grangeiro, responsável por cuidar da voz de Claudia Leitte há 13 anos, disse que a rotina realmente muda e o consultório passa do endereço fixo para cima do trio elétrico e dos palcos durante o carnaval de Salvador. “Eu vivo a rotina do artista, fico praticamente em tempo integral dedicado às necessidades de Claudia Leitte. Faço isso porque amo o que faço e não poderia ser diferente.”

Depois de sua apresentação com o Olodum, nesta terça-feira (9), no Pelourinho, Claudia Leitte se fechou em preparação para o carnaval de Salvador. “Vou ficar 48 horas sem falar. Vai ser difícil cumprir isso agora com o David, mas eu preciso fazer isso para poupar minha voz e deixá-la bem massa para subir no trio.”

Ela já começa a preparação para a folia bem antes de subir e encontrar com os foliões. “Durante a semana que antecede o carnaval e durante a festa, costumo comer carboidrato, comidas leves e nada cítrico.”

Regina, como é mais conhecida, se formou em 1978 e dois anos depois já estava trabalhando com artistas baianos. Ela já cuidou das vozes de Daniela Mercury, Saulo Fernandes, da Banda Eva, Carla Frizzi e Emanuelle Araújo. “Apesar de trabalhar tão de perto com cantores, não me arrisco a pegar no microfone para cantar. Só no chuveiro”, brincou a fonoaudióloga, que afirmou tocar piano de ouvido e por isso considera que tem um sistema auditivo refinado para trabalhar com voz.

Regina disse que Claudia Leitte chegou a ficar dez horas cantando no trio elétrico, sem parar para descansar. “Foi um congestionamento de trios no circuito Osmar (Campo Grande). Isso aconteceu em 2002, foi uma loucura, mas ela [Claudia Leitte] é assim mesmo, elétrica desse jeito”, amenizou a profissional da voz.

Tecnologia aliada do Axé

Para cuidar da voz dos cantores baianos, os fonoaudiólogos usam um software de espectrografia acústica, que permite acompanhar, em tempo integral, as características vocais de cada artista e fazer as recomendações adequadas para que o show não pare até o fim da apresentação. “Eu analiso a voz de hora em hora e faço, em cima do trio, minhas recomendações durante o show, indicando o que o cantor precisa comer ou beber”, disse Janaína Pimenta, que cuida da voz de Ivete Sangalo há 12 anos.

Segundo ela, o cantor de trio precisa ter mais resistência e um profissional que cante sertanejo, por exemplo, vai precisar de mais força, principalmente para os agudos. “Um cantor comum, vamos dizer assim, que faça shows em palcos e por tempo pré-determinado, tem de ter um acompanhamento diferente. Para quem canta no trio, o trabalho é estruturado no exercício de força e resistência vocal e condicionamento funcional da voz”, afirmou Janaína.

Aliado ao trabalho vocal, o cantor deve ter apoio de uma equipe multidisciplinar, com otorrinolaringolistas, fisioterapeutas e nutricionistas. “Os cantores de trios são atletas da voz. Por isso, não dá para querer subir num trio e começar a cantar. Estou preparando Ivete Sangalo para o carnaval há um mês”, disse Janaína, que já cuidou das vozes de Denny, do Timbalada, e de Preta Gil.

Gravidez

Em tempos recentes, duas divas do carnaval da Bahia tiveram filhos. Claudia Leitte e Ivete Sangalo, além de terem suas rotinas alteradas com suas novas companhias, a gestação e a amamentação fizeram com que a voz delas mudasse. “A amamentação tira muita energia da mãe. É mais difícil ganhar massa muscular, por exemplo, e ainda resseca as cordas vocais, como se fosse uma desidratação das mucosas”, disse Janaína.

Para ela, a gravidez é “o caos vocal”. Janaína disse que os últimos meses de Ivete Sangalo foram bastante difíceis para manter a voz em dia. A gravidez muda a voz e isso é fato, a voz fica mais grave e a pessoa tem mais fadiga.”

Regina disse que a mesma atenção foi dada para Claudia Leitte. “A única coisa que não muda são as madrugadas. Eu que sempre acordo para cuidar do David. É dureza, mas eu gosto muito dessa rotina. Durante a gravidez a gente sente a voz diferente, mas tomando todos os cuidados, não tem erro”, disse a cantora.

Pé quente

A fonoaudióloga Valéria Leal também já cuidou de vozes campeãs do carnaval de Salvador. Foram pacientes dela Luana Monalisa, do grupo Na Pegada, cantora revelação do carnaval de 2009, e Léo Santana, do Parangolé, que recebeu o mesmo prêmio.

Em 2008, sob os cuidados de Valéria, os cantores Fred e Kate, do grupo Voa Dois, receberam os prêmios de revelação. Em 2007 foi a vez do cantor Alexandre Guedes. A lista da fonoaudióloga ainda tem Mariela, do Bafafá, cantora revelação de 2006, e Tomate, que ganhou o prêmio em 2005.

Alinne Rosa venceu em 2004 e Ticom, do grupo Os Bambaz, levou a conquista em 2003. Para encerrar, o cantor Kill, do grupo Patchaka foi eleito a revelação da folia em 2002. “Acho que sou pé quente. Aproveito para desafiar qualquer cantor de MPB a subir e cantar em um trio elétrico por até oito horas sem perder qualidade vocal, afinação e fôlego.”