A bandeira da Mocidade Independente de Padre Miguel desliza pelo corpo de Elza Soares. De repente, o seio escapa. “Se mostrar o peito, o marido briga, não pode!”, brinca a estrela maior do desfile da Verde e Branco, enquanto esquenta as baterias para a sessão de fotos. A produtora Rosângela Alvarenga corre para corrigir o figurino. Elza, abusada, surpreende de novo:
— Olha como minha bunda está dura, passa a mão! — ri a eterna rainha.
Sobrancelhas arqueadas, sorriso insinuado, Elza não perde a pose. E se permite brincar com os ponteiros do relógio. Estima-se que seu nascimento se situe em algum momento da década de 30. Mas uma diva não precisa medir o tempo como os mortais. Casada com o produtor e cinegrafista Bruno Lucide, de 26 anos, também seu empresário, Elza entrará na Sapucaí como madrinha de bateria da Mocidade Independente — título que faria qualquer menininha delirar. Mas a estrela tem pés fincados no chão. Diz que saboreia caviar como quem traça uma carne-seca. Sem afetação. A filosofia antienvelhecimento é apenas uma parte do manual de sobrevivência da mulher que já vivenciou — e venceu — muitos naufrágios.
— Tenho a idade da bunda dura. Vivo em um país em que se você não tiver a bunda dura, acabou. É só ir à praia e ver todas as mulheres deitadas de costas. Tudo quanto é homem que passa, dispara: “Ô bundão, olha lá!”. Eles não enjoam de bunda. E graças a Deus que não! Imagina se enjoassem? — provoca Elza, capaz de sacudir a saia do humor e revelar a graça escondida em todos os assuntos.
Enquanto a rainha do rock Rita Lee canta “Meu peito não é de silicone. Sou mais macho que muito homem” na canção “Pagu”, a soberana Elza Soares defende as intervenções cirúrgicas e as próteses que lhe garantem seios firmes.
— Eu tenho silicone, sim. Na bunda, não preciso. Porque bunda de nego que Papai do Céu fez, ninguém derruba. Uma mulher não deve medir esforços para ir à luta e se sentir bem. Mas sendo digna, em todos os sentidos — ressalta.
Elza acredita no seu poder de vencer qualquer limitação. Há dois meses, uma torção no tornozelo esquerdo vem lhe tirando o sono. Para superar o problema, a estrela nascida no núcleo residencial Moça Bonita, hoje Vila Vintém, em Padre Miguel, se dedica com afinco às sessões de fisioterapia. Quer estar em forma para ajudar sua escola na Avenida. Tem evitado até pisar forte no chão, por precaução. Só posa para fotos sentada. E, na hora de se locomover, conta com a ajuda de um fiel séquito de amigos — que inclui assessor de imprensa e maquiador — para lhe dar um ombro amigo.
Apesar de todos os contratempos, a artista, que recebeu da BBC de Londres o título de cantora do milênio em 2000, não perde o rebolado. Ao encontrar o presidente da escola, Paulo Vianna, no corredor do barracão, olha para os pés e dispara: “Isso foi inveja”.
— Depois de um show em Belo Horizonte, saí do palco, entrei no camarim e fui falar com meu marido. O pé virou. Na hora, não senti dor nem nada. Voltei para São Paulo. Quando parei para descansar, o desespero. Eu não sentia absolutamente nada, a perna, nada. Não tinha nenhum tato. Fiz todos os exames e foi constatada a torção. Mas a Mocidade não vai ficar sem Elza. Nem que eu tenha que vir em um carro — diz a madrinha.
O inchaço e o incômodo no tornozelo não representam nada para a mulher que aprendeu pela cartilha da dor. Sobrevivente de perdas capazes de derrubar qualquer ser humano — como a morte do filho Garrinchinha, aos 8 anos, em um acidente — Elza prova que não é um ser humano qualquer. Longe disso. Aos 12 anos, foi obrigada a se casar com o ajudante de caminhoneiro Alaúrdes Soares. Ele havia tentado agarrá-la, Elza conseguiu se desatar, mas os dois rolaram por uma ribanceira. O pai acreditou que a filha tinha sido molestada e providenciou o casamento, mesmo contra a vontade da menina. Elza teve sete filhos dessa união. Três bebês morreram, um no nascimento e outros por complicações decorrentes da pobreza, fome e tuberculose. Ficou viúva aos 21 anos, quando já tinha tido seu primeiro emprego como operária em uma fábrica de sabão. Mais tarde, sacudiu o país com a turbulenta — e tórrida — paixão pelo jogador Garrincha, vítima fatal do alcoolismo. Elza lutou para reerguê-lo, mas os dois acabaram se separando.
— Não tem um ditado que diz que a dor ensina a gemer? Pois é isso. A dor ensina tudo. Quando você tem uma alegria, pensa que é eterna — reflete a diva, que defende uma postura corajosa diante da vida: — Eu não tenho medo de nada, nada. Você tem que ensinar o medo a ter medo de você. Minha vida sempre foi de muita luta. Eu sou uma vencedora.
Sua primeira grande vitória na vida artística aconteceu no programa de rádio do já consagrado Ary Barroso, “Calouros em desfile”, em 1953.
— Eu era uma criança de favela bem tratada. E devia pesar uns trinta e poucos quilos. Já era mãe. Quando me inscrevi, me mandaram ir bonita. Falei: “Cacilda!” Usei um vestido da minha mãe, que pesava mais do que eu. Ajustei com alfinetes. Quando entrei no palco, era uma coisa inacreditável, de maria chiquinha com aquela roupa. Todo mundo se assustou. Era um horror — dispara Elza.
Diante da caloura desajeitada, o apresentador perguntou: “De que planeta você veio, menina?”. Desde cedo acostumada às verdades, Elza respondeu de cara: “Do planeta fome, Seu Ary”. Depois que soltou o vozeirão, a cantora cumpriu pela primeira vez seu destino: ir além de qualquer rótulo. Ao fim de sua apresentação — com a música “Lama” — ouviu do apresentador: “Hoje, nasceu uma estrela!”.
Que brilha, décadas após o episódio, em um céu tranquilo. Romântica e “feita para casar”, Elza vive em estado de graça.
— Eu e Bruno estamos juntos há dois anos, mas parece uma eternidade. É muito amor — conta Elza.
Mais uma vez, a cantora não faz tipo. Seu casamento não tem nada de moderninho. Ambos são ciumentos e marcam bem seu território.
— Quando estive na quadra da Mocidade, um fã pediu para me dar um beijo no rosto no camarote. Eu deixei e ele me tascou uma lambida na bochecha. Bruno virou uma fera: pegou o cara e avisou, “Não faça isso outra vez” — conta, ainda surpreendida com a cena.
Elza também não faz por menos:
— Sou ciumenta. Não solto os cachorros não porque a cachorrada está muito mansa. Vou logo de abraço de urso mesmo. A mulherada está muito vadia. Diz que traição não vai tirar pedaço, mas tira sim!! A gotinha que era sua acaba ficando com a outra — diz, ousada.
Mas Elza perdoaria uma traição?
— Dependendo da traição, a gente até pensa em perdoar, enfim. Mas é a própria mulher que cria o homem para trair, com essa história de que homem não chora, homem tem que ser durão — critica a cantora.
Apesar de ciumenta, Elza não demonstra insegurança. Vive feliz, cercada pelo marido, a cunhada Nayara Lúcide, o assessor Geraldo Rocha, o sócio de Bruno, Oswaldo Elias, entre outros companheiros de Minas Gerais. E dos amigos gays.
— Uma mulher precisa de um amigo gay sempre ao lado. Eles são mais sinceros. Se disserem que você não está bem, é verdade, corre! — explica a cantora, que em casa, adora andar nua e ouvir os conselhos dos seus vários espelhos.
— Tenho muitos em casa. Às vezes, olho e digo: “de manhã, não tinha isso aqui” (referindo-se a uma ruga no rosto). Aí, tem que botar um gelinho para sumir — brinca: — A mulher é gostosa enquanto o espelho não a recusa. É o espelho que dá o sinal. Quando começa a dizer “não”, é hora de ir à luta. E voltar a se sentir bem.
São muitos os artifícios que ajudam nessa batalha pelo bem-estar feminino, ensina Elza. Diante do espelho e, por que não?, também na cama. Frequentadora de sex shops, ela não mede esforços para aquecer o casamento.
— Mas só compro roupas, lingeries... Vale a pena. Mulheres do Brasil, façam uma visita a uma sex shop. Uma boa lingerie esquenta a relação. Gosto do vermelho, do pretinho. Meu marido me deu uma no Dia dos Namorados que é um escândalo. Libido é vida. Se você não tem estímulo, não tem vida — conclui a cantora, que adorou o colo do Adão, figura de destaque no abre-alas da Mocidade, que desfilará com o enredo “Do paraíso de Deus ao paraíso da loucura, cada um sabe o que procura”.
— Estou me sentindo a própria Eva. Mas eu não morderia um pedação da maçã, comeria ela todinha. Olha Adão, cuidado, vai devagar... — brincava com a estátua, deitando e rolando, pra lá de sedutora, como sempre.
Em 2010, Elza brincará em todas as avenidas. Sua voz — elogiada pelo monstro sagrado Louis Armstrong, que já a chamou de “filha” pelas semelhanças musicais — promete enlouquecer os fãs num CD de jazz, com clássicos como “Strange fruit”, “Summertime” e “Imagination”, com lançamento previsto para julho. Sua história ainda é tema de dois documentários, da cineasta Izabel Jaguaribe e da mineira Elizabete Martins, que acompanhou toda a entrevista e a visita ao barracão da escola com sua câmera.
Elza é uma deusa na Mocidade:
— Elza é o próprio Eldorado. É uma honra muito grande tê-la em um carnaval que tenho a humildade de assinar. É um presente de Deus. Tenho que agradecer ao Cara — diz, emocionado, Cid Carvalho, enquanto mostra a Elza dois protótipos de sua fantasia “O glamour do Eldorado”.
A cantora lembra, emocionada, o caminho que a levou até o barracão:
— Eu chorei feito desesperada assistindo à apuração ano passado. A Mocidade não merecia aquilo (o 11 lugar). A Mocidade merece dignidade e respeito. Eu tenho um dever a cumprir com Mestre André (da bateria nota dez). Quando me chamaram, tive medo de o desfile não ser o que idealizava. Falei para meu marido não ficar preocupado que não ia aceitar. Mas depois vi que seria covardia. E aceitei.
Elza permanece fiel a sua história. Tanto que escolheu o título “Operária brasileira” para os shows que estreou no Teatro Rival. Quando olha para trás, sente-se satisfeita com sua luta e à vontade para contar sua vida.
— Eu divido minha história porque ela pertence a mim. Sou dona dela. Você já viu alguém sem história ser feliz?