Tia, por que dói tanto ser negro!?

08/11/2009 20:26 - Raízes da África
Por Arísia Barros

O menino chega junto à tia e do alto de seus seis anos fala: Tia, não tem lápis - de cor-da-cor-da- minha- pele!
A turma de meninos e meninas se entrelaça em sorrisos grotescos das ressonâncias sociais apreendidas. Sendo a única criança negra de uma turma homogeneamente branca, de uma escola seletivamente particular, a criança sintetiza o colorido do diferencial, pois antes lápis-cor-da- pele simbolizava a analogia as crianças ditas brancas. Foi a tia quem ensinou e a criançada absorveu o ensaio pedagógico do poder étnico e suas representações. Afinal, conclui didaticamente a tia: porque trabalhar a temática negra se em nosso universo escolar não existem crianças negras? Não existia! E olhando para o menino que-não-tem-a-pele-da-cor-do-lápis-da-escola-hermeticamente hegemônica a tia ensaia um discurso carregado de sentidos sociais: Coitado, nós vamos cuidar do seu problema! O racismo é uma personagem mítica que domina o discurso pedagógico dando-lhe um viés ideológico
O grande problema no Brasil miscigênico é a inversão de valores impondo à vítima a condição de usurpadora de seus próprios direitos. A naturalização do racismo pode ser percebida em alguns discursos que tendem a diminuir a importância da discriminação racial no universo social.
O lápis-cor-de- rosa realça a ambigüidade das relações raciais que ilustram o pensamento do ideário coletivo. Nosso país mesmo sendo o 2º país mais negro do mundo assume um fenótipo eurocêntrico como aparência nacional. A criança negra ainda não se via racializada até ter o contato com os conceitos de cotas raciais ditados pela pedagogia da sua escola. A primeira experiência de vida escolar determinou seus conceitos da invisibilidade, da não existência. Tia não tem lápis da minha cor!?
Como trabalhar a auto-estima de uma criança dita diferente se a nossa escola estabelece privilégios simbólicos resultantes do possível mérito da criança não ser negra? Essa criança representa um caso atípico: ela não faz parte das ruas oblíquas e apertadas da extrema pobreza que agarra o povo negro, é filha de família tradicional, estuda em um colégio tradicional, entretanto isso não a livra de ser racializada na escola. Como é mesmo aquela velha máxima de que negro é excluído porque é pobre? Negro é excluído porque é negro e essa exclusão social aprofunda o fosso da pobreza.
Tornou-se natural para o pensamento dominante pensar a escola pela lógica escravocrata, branca, masculina e cristã e pegando carona no discurso da miscigenação, a construção da identidade negra no currículo escolar reside, sempre,na periferia da importância histórica. A história do guerreiro povo negro recusa condescendências! Mesmo estando em um colégio em que a educação é de extrema qualidade a criança negra sente refletida em sua auto-estima a desigualdade e o desconhecimento histórico que a escola brasileira criou, consolidou e vivencia em seu processo de desenvolvimento curricular.?Se não soubermos de onde viemos, dificilmente saberemos para onde iremos? , diz um provérbio africano. Nos planejamentos pedagógicos da tia da escola onde se ensina que cotas raciais são permitidas sim, quando isso não mexe com os privilégios históricos, simbólicos e materiais de ter nascido não- negro, urge pela construção de historinhas que conte contos universais, desde a torre de babel até a interlocução de vozes, culturas, de povos em contraposição à lógica hegemônica.Crianças brancas, índias, negras e outras tantas categorias ditadas pelo IBGE precisam se sentir sujeitos partícipes na construção escolar para se perceberem refletidas no espelho da coletividade e assim construir a sua auto-imagem positiva.
Ao impor um currículo imperialista e secular com concepções colonizadoras e legitimadas, a escola retrai o pensamento crítico, a visão da diversidade e a percepção das muitas alternativas e investimentos para a formação de projetos voltados para a cultura ética e étnica contra preconceitos e discriminações. O universo pedagógico precisa trabalhar a sua criticidade e estruturar paradigmas calcados nos quatro pilares da educação:
1- Aprender a conhecer, é necessário que cada um e cada uma de nós se perceba,conheça a si mesmo,ou seja, o autoconhecimento permite uma maior comunhão com a nossa história identitária.
2- Aprender a fazer- é preciso aprender como os meus fizeram, como fazem os outros, como podemos fazer juntos e o que podemos fazer. Há uma interação permanente nesse princípio, não se deve fazer apenas para si mesmo, mas ao fazer, eu preciso saber que faço com e para o outro, estimulando assim a cooperação entre os diferentes sujeitos.
3- Aprender a viver juntos, é preciso aprender a reconhecer no outro a sua humanidade. Aprender a ter uma visão crítica de que é preciso estabelecer pontos comuns nas inúmeras diferenças que possuímos como seres humanos. É acentuar a consciência de que os valores da diversidade devem ser preservados e/ou conquistados como princípio de convivência. Sendo necessário para isso, em alguns casos, compreender os conflitos gerados na conquista da igualdade dos bens civilizatórios materiais e simbólicos para todos.
4- Aprender a ser- é preciso saber de onde se é e por quem somos constituídos, ninguém apenas é de modo individualizado, saber ser no sentido mais amplo desse conceito, inclui saber que só se é com o outro, para ser eu preciso aprender como foram os meus pares e como são hoje os iguais e os diferentes de mim ou seja, o eu se constrói no coletivo.Reconheço-me como humano ao conviver com outras humanidades/ diversidades. As escolas brasileiras - principalmente as da terra negra de Zumbi - precisam urgentemente fazer valer o que diz a legislação federal nº10. 639 de 09 de janeiro de 2003- que cria a obrigatoriedade do estudo da África e dos afro descendentes no currículo escolar- para que possamos ter mais e mais gente envolvida com um novo tempo- o tempo presente do respeito à diversidade humana.
Um tempo em que não precisaremos responder perguntas como essas, de um garoto negro de 08 anos: Tia, por que dói tanto ser negro!?


 

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