A memória da escola ainda não aprendeu a lidar com a riqueza das africanidades brasileiras

14/10/2009 21:06 - Raízes da África
Por Arísia Barros

Ela tinha 06 anos e já sabia ler em uma fase da vida em que muitos e muitas estão sendo alfabetizados.
Ela lia de uma forma primorosa, alinhavando as palavras em articulação com a satisfação que invadia a alma. Ego, Superego todos fizeram festa. Era a única criança da sala que sabia decifrar palavras, uma incógnita para toda turma. E por ousar ser protagonista de sua história, a menina ficou de castigo.
O Brasil foi o país de maior e mais longa escravidão urbana e a história conceitual da submissão e obediência de negros “escravos” circunda as regras das relações humanas. A menina extrapolou paradigmas. A professora distante da realidade sobre diferenças humanas endossou o apartheid intelectual afirmando que a menina tinha decorado toda lição para constranger os amigos de sala. A turma concordou.
A menina engoliu em seco, ergueu a cabeça, encarou a professora e foi pro castigo na diretoria,pinçou a dor que por muitos anos dissecou-lhe a confiança em pessoas e só chorou em casa.
O contar dos fatos provocou a indignação da irmã, professora que se apropriando da história de vida da pequena leitora foi à escola saber o porque de tanto alvoroço.
A professora didaticamente concebeu para a turma e estabeleceu que a menina negra não possuía competências para tal, pavimentando assim o caminho da racialização, construindo uma escala de valores nitidamente tendenciosa. Porque será mesmo que as quotas causam tanta polêmica?
O racismo é uma crença na existência das raças naturalmente hierarquizadas pela relação intrínseca entre o físico e o moral, o físico e o intelecto, o físico e o cultural. O racista cria a raça no sentido sociológico, ou seja, a raça no imaginário do racista não é exclusivamente um grupo definido pelos traços físicos. A raça na cabeça dele é um grupo social com traços culturais, lingüísticos, religiosos, etc. que ele considera naturalmente inferiores ao grupo a qual ele pertence. De outro modo, o racismo é essa tendência que consiste em considerar que as características intelectuais e morais de um dado grupo, são conseqüências diretas de suas características físicas ou biológicas.
A menina crescia e avançava no aprendizado. Um dia conheceu a professora que radicalizou o projeto do ser humano e agregou sonhos, sorrisos e a reflexão compartilhada. Estabeleceu diálogo sobre gente e seus potenciais: sim, vocês podem!!
Tanto dizia que inflou de crença a menina e sua turma. Aquela professora conseguiu, promover , na menina, uma intrínseca mobilização e transformação pessoal.
Hoje mulher,ainda lembra do fato e se ressente da racialização da primeira professora.
E entre a instabilidade e a continuidade da caminhada, a menina, agora mulher traça a trilha de desnudar a palavra e estabelecer equações de auto-encontro.
A memória da escola ainda não aprendeu a lidar com a riqueza das africanidades brasileiras.

 

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