Trazer consigo uma boa lembrança, nos dizia Fiódor Dostoiévski, ajuda muito a viver. Ter boas histórias para contar, por sua vez, é um presente da vida - saber fazê-lo é um dom.

Raul Plassmann, comentarista de futebol, é um desses personagens que nos divertem narrando suas aventuras de atleta do esporte preferido no Brasil e em boa parte do mundo.

Goleiro de raro senso de colocação, Raul, o “Velho”, vestiu as camisas do Cruzeiro – da geração de Tostão, Dirceu Lopes e Wilson Piazza -, do Flamengo – de Zico, Adílio e Adão – e da Seleção Brasileira. Não foi  titular da magistral equipe nacional da Copa de 1982, que nos dava um imenso prazer de ver jogar, por conta de um descuido. 

Em um dia de treino, sob o comando do fantástico e turrão Telê Santana, ele dormiu mais do que devia. Foi acordado por um integrante da comissão técnica, que lhe alertou para o atraso. Pensou que se tratava de uma brincadeira e escreveu um bilhete para o Mestre Telê, a quem mandou entregar: “Vale um treino”, assinando embaixo. Resultado: a vaga ficou com o também excelente Valdir Peres.

Mas a saga do paranaense que se fez mineiro começara muito antes, e é preciso entendê-la dentro do seu tempo  histórico e cultural, quando o que hoje é repudiado, pelo menos publicamente, era razoável e tolerável. Nos anos de 1960, Raul ganhou fama como “o goleiro da camisa amarela”. Puro acaso, conta o próprio. Ao chegar ao vestiário para trocar de roupa, viu que sua tradicional blusa cinza estava rasgada. Pediu ajuda aos companheiros, e um deles lhe apresentou um moleton da cor que ele consagrou e que a torcida atleticana demonizou. Ao entrar em campo, a galera adversária foi à forra: “Bicha, bicha!” – era homofobia explícita mesmo.

As mulheres adoraram ver aquele atleta louro, alto, bonito, que vestia calça saint-tropez, na sua moderna indumentária. Vieram as alcunhas – "Wanderlea" (no auge), sendo a mais difundida. A mãe de Raul não demorou a conhecer a nova imagem do filho, ao visitá-lo na machista Belo Horizonte. Tratou de não constranger a cria, até que um dia recebeu-o para o Natal, em Curitiba. Numa madrugada, o goleiro acordou e viu a progenitora ao pé da sua cama, ajoelhada, terço na mão, balbuciando algumas orações. Intrigado, Raul perguntou-lhe do que se tratava:

- Pode contar a verdade para a sua mãe. Eu estou preparada.

Explicou-se como podia e estava acostumado a fazer. Afinal, o pior já havia passado. Em um jogo, na Vila Belmiro, enfrentava nada menos do que o Santos de Pelé e mais dez. Isso já faria qualquer um tremer; sendo goleiro, pior ainda.

A partida estava equilibrada, afinal, vestiam a então belíssima camisa azul das Alterosas, Tostão, Natal e tantos outros craques. Mas do outro lado...

Pois é: havia um gênio, que era um homem do seu tempo e que também sabia ser mau (nada de cancelamento, viu gente?). Escanteio para o Santos, e o atento Raul se preparava para o perigo. Olhos bem abertos, passou em revista a sua área. Viu, de soslaio, cada um dos seus possíveis algozes, até que bateu de frente com o Rei Negro. Sorriso maroto, de canto de boca, Pelé acenou-lhe com uma sedutora piscadela de olho. O goleirão desconcertou-se e não teve mais conserto: perdeu a pose e o jogo.

Ao apito final do juiz, ainda tentou pedir explicação para a provocação.

Pelé: 

- Eu?!