No calendário de feriados brasileiros, o Dia da Consciência Negra é mais do que uma data de memória, é um momento de reafirmação da potência, criatividade e capacidade de sobrevivência da cultura negra. Na comunidade remanescente do quilombo Sapé, na zona rural de Igreja Nova, essa resistência tem cheiro de bolo de massa puba saindo do forno e sabor de sequilho de coco. É lá que a Associação das Mulheres Guerreiras do Sapé está reescrevendo a história da comunidade unindo a tradição culinária com técnicas modernas de produção e gestão oferecidas pelo Sebrae.

A jornada teve início em 2019, movida pela aflição de Maria Quitéria Matias. Como líder comunitária, assistia com tristeza a evasão de famílias do quilombo. A falta de opções de trabalho e renda fazia com que muitos filhos e netos das comunidades quilombolas Sapé e Tabuleiro deixassem suas terras ancestrais e migravam em busca de sobrevivência em estados como Minas Gerais e Mato Grosso.

“Precisava fazer algo para evitar que essa evasão continuasse”, conta Quitéria. A resposta veio da terra e da memória. Ela reuniu um grupo, inicialmente formado por oito mulheres, que apostou no resgate da culinária tradicional dos quilombos, aquelas receitas adormecidas pelo tempo e desvalorizadas pelo mercado convencional.

Mulheres Guerreiras: tradição, força e empreendedorismo que transformam a comunidade.

O ouro da terra vai para a mesa

A vivência diária da agricultura mostrou a elas que todos os ingredientes que precisavam estavam ali na terra, em abundância. E então se desafiaram a não utilizar farinha de trigo, que é base no preparo da maioria dos pratos. Em vez dele, usariam toda a riqueza que possuem no próprio quintal: a macaxeira e o coco, que estão presentes na maior parte das receitas e também o milho, a batata, a banana e o amendoim. “Expliquei que a gente precisava trabalhar com algo diferente, recuperar as receitas dos quilombos que estavam adormecidas, desvalorizadas. Sabia que seria um desafio, mas era o objetivo que Deus tinha colocado na minha cabeça”, relata a presidente, que tinha contato com a culinária afro-brasileira desde a infância, quando observava e ajudava tios e tias que vendiam quitutes na comunidade.

Como guardiã desses saberes, logo assumiu o papel de instrutora e passou a ensinar ao grupo de mulheres, que só crescia, as receitas que faziam parte da sua família e eram tradicionais na região, como a cocada preta, feita apenas de coco e açúcar; beiju, macasada, uma linha extensa de bolos produzidos a partir da macaxeira e outros ingredientes locais; e o sequilho, um dos carros-chefe da associação.

As “Mulheres Guerreiras” começaram vendendo a produção de porta em porta e, com o tempo, passaram a participar da feira da agricultura familiar do município. O sabor autêntico, carregado de ancestralidade e sem conservantes industriais, atraiu a atenção. A Ufal e o Ifal passaram a divulgar os produtos e algum tempo depois as encomendas começaram a chegar de longe, até mesmo de São Paulo. Mas, de acordo com Quitéria, faltava “alguma coisa” para transformar esse sucesso em um negócio sustentável: a profissionalização.

O xeque-mate da profissionalização

Para expandir o mercado dos quitutes produzidos na comunidade, a Associação precisava vencer barreiras técnicas. Como vender para o setor público sem ficha técnica? Como garantir a segurança alimentar e o prazo de validade dos produtos que, às vezes, viajam quilômetros? A resposta para essas perguntas veio em 2024, quando a parceria do Sebrae se tornou o divisor de águas.

Atendendo a um pedido da associação, intermediado pela Secretaria de Agricultura do município, o Sebrae Alagoas conheceu a iniciativa e começou a apoiar a Associação. Recentemente, nos dias 12 e 13 de novembro, levou para o grupo de mulheres oficinas sobre empreendedorismo sustentável, com foco no aperfeiçoamento dos produtos.

Para Quitéria, a chegada do Sebrae foi o “xeque-mate” que faltava. “A gente precisava apresentar para o consumidor um produto com prazo de validade, segurança higiênica. O trabalho do Sebrae ajudou a nos dar segurança para dizer que nosso produto tem qualidade garantida”, afirma.

Por meio de oficinas, Sebrae impulsiona a produção quilombola e fortalece o caminho para novos mercados.

Francisco Guilherme, da regional do Sebrae em Penedo, explica que o trabalho é mais do que técnica, é valorização da identidade. “Durante as oficinas, trabalhamos produtos locais que despertam o sabor e identidade ancestral do grupo. É fundamental ativar o empreendedorismo nessas mulheres, para que elas passem a comercializar em grande escala, tenham acesso a políticas públicas e movimentem a economia local”, explica.

Acesso a mercado e autonomia

A parceria com o Sebrae levou à padronização dos processos, à garantia de conformidade sanitária e à abertura de portas para as mulheres quilombolas de Igreja Nova, que se preparam para fornecer seus produtos para o Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) e Programa de Aquisição de Alimentos (PAA).

A chegada dos alimentos produzidos nos quilombos chegando à merenda escolar é uma conquista simbólica. “Já fechamos com o PNAE e vamos apresentar essas receitas qualificadas agora. Esse era o nosso maior sonho, que não conseguiríamos alcançar sem a ajuda do Sebrae”, comemora Quitéria.

Receitas ancestrais ganham qualidade e chegam a novos espaços, da feira à merenda escolar.

Hoje, a associação é formada por 52 mulheres dos quilombos Sapé e Tabuleiro, mas o trabalho já envolve maridos, filhos, genros e noras, cumprindo o objetivo inicial, manter as famílias unidas nos quilombos, vivendo dignamente do seu trabalho. “O Sebrae tem apostado neste trabalho por entender que ele preserva a cultura e a história de grupos fundamentais, como as comunidades remanescentes de quilombo. O Quilombo Sapé, único de Igreja Nova, é um exemplo vivo disso. O Sebrae atua como agente de desenvolvimento justamente para dar continuidade a esse legado, garantindo que a essência e o uso de produtos ancestrais, especialmente a mandioca, não se percam”, finaliza Francisco Guilherme.