A palavra “anistia” tem origem na raiz grega amnestia, derivada de amnesia, que significa esquecimento. Enquanto a amnésia é uma falha de memória patológica, a anistia é um esquecimento voluntário, uma escolha coletiva para restaurar a paz e a convivência social. Na Grécia Antiga, era um instrumento político-jurídico de reconciliação: perdoar delitos para permitir que o tecido social se recompusesse. Sólon, legislador ateniense (c. 633 a.C.–553 a.C.) e considerado um dos pais fundadores da democracia, utilizou a anistia como forma de reorganizar a pólis após conflitos internos.
No Brasil, a história da anistia acompanha nossa formação como sociedade. No período colonial, conflitos como a Guerra dos Emboabas (1707–1709), que envolveram confrontos armados entre paulistas e forasteiros nas minas de ouro, foram seguidos por intervenções da Coroa portuguesa para pacificar e, posteriormente, perdoar, numa espécie de anistia implícita para evitar novos levantes. Em 1709, o governador Antônio de Albuquerque Coelho de Carvalho foi figura central nesse processo de pacificação.
Durante o período imperial, a anistia teve papel relevante. Movimentos separatistas, como a Revolução Farroupilha, receberam perdões reais, e após a Guerra do Paraguai (1864–1870), até desertores foram anistiados para recompor as fileiras. Revoltas como a Beckman (1684), a Balaiada (1838–1841) e a Praieira (1848–1850) também contaram com concessões de perdão como estratégia de pacificação. A Inconfidência Mineira (1789), apesar da execução de Tiradentes, viu seus participantes reabilitados gradualmente, culminando no século XX com a anistia moral e política concedida pelo Estado brasileiro — mostrando como a memória oficial pode exercer função de anistia histórica.
No século XX, Getúlio Vargas utilizou a anistia em diferentes momentos. Após o fim do Estado Novo, em 1945, presos políticos, exilados e militares punidos durante seu regime autoritário foram beneficiados por decreto assinado em 18 de abril. Entre os 563 anistiados estavam figuras como Luiz Carlos Prestes, líder da Intentona Comunista, e Carlos Marighella, guerrilheiro comunista responsável por assassinatos, atentados, assaltos a bancos e sequestros, incluindo o do embaixador americano Charles Burke Elbrick, em 1969. Ao todo, foram quatro sequestros de diplomatas em troca da libertação de presos comunistas, entre eles José Dirceu — famoso guru da esquerda brasileira — também anistiado.
Em 1970, o Partido Comunista Brasileiro criou a Guerrilha do Araguaia, inspirada nas estratégias do tirano Mao Tsé-Tung na China, organizando ligas camponesas no sul do Pará. Um dos líderes era José Genoíno, posteriormente anistiado pela Lei de 1979. Em 31 de agosto daquele ano, o Jornal Nacional exibiu ao vivo a chegada dos exilados ao Brasil. Entre os beneficiados estava Dilma Rousseff, que à época havia participado de assaltos a bancos — incluindo o roubo de 2 milhões de dólares ao Banco do Estado de São Paulo, sob a gestão do governador Ademar de Barros. Anos depois, tornou-se, não se sabe como, presidente da República.
Os retornos foram marcantes: em 1º de setembro de 1971, um grupo de repatriados se misturou à delegação do Flamengo no aeroporto do Rio de Janeiro. No feriado de 7 de setembro, Leonel Brizola discursou ao chegar ao Brasil pelo sul do Pará. Em 15 de setembro foi a vez de Miguel Arraes, Darcy Ribeiro e outros. Márcio Moreira Alves, autor do discurso que irritou profundamente os militares, também foi beneficiado. O sociólogo Betinho foi recebido pelo irmão, o cartunista Henfil, no aeroporto de Congonhas. Todos anistiados.
O movimento pela anistia começou a ganhar corpo em 1972, conduzido pelo MDB, partido de oposição à Arena, que sustentava o regime militar. O Comitê Brasileiro pela Anistia foi formalmente criado apenas em 1978. Na época, Luiz Inácio Lula da Silva, então líder sindical, circulava pelo ABC paulista distribuindo panfletos vestido com uma camisa branca — foto que tem circulado na internet — com os dizeres “Anistia Já”. O próprio Partido dos Trabalhadores (PT) só nasceu, em fevereiro de 1980, porque o presidente militar João Batista Figueiredo assinou a Lei nº 6.683, a Lei da Anistia de 1979. PSDB e PT, protagonistas da política brasileira por quase três décadas, só existiram nesse formato graças a esse contexto.
A esquerda brasileira se reinventou nos anos seguintes, não mais pela via armada, mas pela ocupação dos espaços culturais. Artistas como Caetano Veloso — que em 1978 produziu a canção “Che”, em alusão ao guerrilheiro assassino Che Guevara — também foram anistiados. Caetano e Gilberto Gil haviam sido presos pelo DOPS por 54 dias em 1969 e só foram libertados junto com cerca de 8.500 pessoas, incluindo militares acusados de excessos e torturas. A anistia foi, portanto, ampla, geral e irrestrita, abrangendo crimes de todos os lados.
Os acontecimentos de 8 de janeiro representaram um momento grave para a frágil democracia brasileira e não podem ser ignorados. Mas é igualmente evidente que a maioria dos acusados — pessoas comuns, desarmadas, sem liderança centralizada ou comando estratégico — não praticou um golpe de Estado, mas sim atos isolados de baderna, vandalismo e depredação — ilícitos que, embora condenáveis e motivados por um processo eleitoral insuflado de dúvidas, foram praticados repetidamente por diferentes espectros políticos nas últimas décadas sem jamais serem tratados como crimes de lesa-pátria.
Responsabilizá-los por crimes que não cometeram é distorcer o próprio conceito de Justiça. O rigor seletivo, o julgamento em última instância, as certidões positivas fabricadas por preferência política e as prisões preventivas prolongadas contrastam fortemente com a benevolência concedida, no passado, a militantes anistiados por crimes muito mais graves, incluindo sequestros, atentados e homicídios.
Uma democracia coerente não pode agir com dois pesos e duas medidas. Ela deve punir proporcionalmente, garantir o devido processo legal e respeitar os direitos fundamentais de todo acusado. Não se trata de minimizar ilícitos, mas de assegurar que cada pena corresponda à conduta praticada.
Se antigos militantes foram anistiados em nome da pacificação nacional, por que negar um olhar mais humano a pessoas que, embora tenham cometido infrações, não derramaram sangue nem tinham um plano real de tomada do poder? O verdadeiro fortalecimento da democracia passa pela coerência: anistia não pode ser um instrumento seletivo, mas um ato de esquecimento voluntário e de pacificação nacional. Portanto, anistia: ampla, geral e irrestrita — nem mais, nem menos.