Provoca-me fascínio, até hoje, ver a discussão de acadêmicos e especialistas em literatura do mundo inteiro sobre a "traição" de Capitu, bem mais de um século após o grande escritor brasileiro pôr o ponto final na sua história imortal. Poderia muito bem a certeza da traição ser uma sentença que não gerasse qualquer dúvida, não fosse a condição do narrador - o próprio "traído", Bentinho -, envenenado por um dos piores sentimentos entre todos que dominam a alma humana: o ciúme. 

Se há ou não razão no sofrimento do marido da bela dama que tinha "olhos de ressaca", pouco importa, porque a história ganhou o mundo exatamente pela sua rota de incertezas.  

Não há forte que não desmorone ante a sensação de ser enganado pelo ser amado. Aí, do nada, tudo se constrói como a mais cruel das verdades. A aparência vira essência, a alma ferida quer ferir também, e, algumas vezes, a consequência, incontrolável, faz vítima quem era protagonista das alegrias mais desejadas.   

Acho, ao fim e ao cabo, que o ciúme, assim como a inveja, é uma punhalada no ego, esse bicho que vive dentro de cada um de nós, que precisa sempre ser domado, mas sem o qual ninguém pode se situar no mundo.

Creio que nós todos, um a um, temos um Narciso sempre a postos, escondido – ou nem tanto – no escuro da nossa alma. Necessário, sim, mas do mesmo jeito que fazemos com um animal de estimação de que somos tutor (atualizando a linguagem do politicamente correto), precisamos domá-lo e mantê-lo numa guia com a qual possamos controlá-lo.  

É isso, gente: o Narciso quando foge do dono faz deste seu mais infame escravo.

William Shakespeare foi definitivo sobre o tema do ciúme, no seu "Otelo". Ali, já disseram ou doutos do tema, há um tratado sobre o ciúme como nenhum outro grande livro conseguiu sê-lo. A trama sórdida urdida por Iago, a encarnação do vilão - nas artes e na vida -, destruiu a fibra do "mouro", fazendo-o ver em cada ato ou gesto da sua Desdêmona a prova última da traição.

Veneno, essa a palavra usada pelo perverso Iago para definir aquilo que tomava o sangue do mais bravo de todos os comandantes ("Trabalha, trabalha, meu veneno. Trabalha! Desse modo é que pegamos os idiotas crédulos”). O problema é que o “idiota crédulo” só se descobre assim quando já vive os efeitos de suas ações.

"O ciúme é um sentimento que se alimenta de si próprio", ensinou-nos, então, o bardo inglês. E quem dele já provou, sabe que esse veneno nos tira a capacidade de enxergar o que é real. A fantasia, nos mínimos detalhes, nos conduz a um enredo de tragédia, como a de Shakespeare, mesmo - e felizmente - quando não atinge um desfecho tão sangrento.

Quem nunca assim se sentiu na presença ou na ausência da pessoa amada? E qual não foi a reação anímica de cada um de nós ao percebê-lo, o ciúme, invadir nosso peito como sentimento avassalador, a não permitir compartilhar os pensamentos com nada mais que não seja o desejo de vingança?

Bentinho construiu-a na sua narrativa; Otelo entregou a própria vida ao seu desencanto - mais ainda à constatação de que sua vendeta (a morte de Desdêmona) havia sido o fruto envenenado da sua fraqueza. Que fantástico quando a literatura nos ensina a mergulhar nos labirintos da nossa própria alma!

Vinícius de Moraes, o poeta que viveu como poeta, conheceu e traduziu como poucos o que é o amor entre um homem e uma mulher (e suas variações), a paixão romântica, que todos buscam com tanta determinação antes que chegue a maturidade - depois, assim penso, pesam mais outras questões numa relação a dois que se mantém viva, sobrevivendo ao tempo.

Fato é que há muito de real e de fantasia no seu verso:

"O ciúme é o perfume do amor".

Mas como é desagradável uma pessoa perfumada demais!