Rendeu muitas matérias na mídia nacional a morte do eterno presidente do Uruguai, Pepe Mujica, merecedor de todas as homenagens que vem recebendo e ainda receberá.

Vou discordar, pontualmente, de uma das manchetes mais frequentes, em que o histórico personagem foi tratado como “ícone da esquerda latino-americana”. É pouco! Mujica é muito mais do que isso. Ele sempre será desses seres humanos a quem devemos render respeito e admiração, por raro, que destaca na sua trajetória uma qualidade que encontramos em poucos: a coerência impressionante entre discurso e prática - ele foi o que disse que era.

Sua vida modesta e seus hábitos simples, ressaltados por todos que dele falaram, são exatamente aquilo que ele pregou, nos dizendo com serenidade: - Para que mais, se eu preciso apenas disso para viver?

Seguramente, até por ser um homem que amou as letras e o conhecimento, sabia e concordava com Epicuro, para quem apenas as coisas simples e naturais são indispensáveis; “as outras são inúteis”. 

Ateu convicto, não me parece, o nosso Mujica, diferente do papa Francisco, também morto recentemente e de quem era bastante próximo. Não falo especialmente pelo voto de pobreza ou algo assim. O que volto a ressaltar é o encontro entre discurso e prática, o milagre da coerência, um dos maiores desafios de cada ser humano, e que é só vencido por aqueles que, de fato, são invulgares e merecem ser uma espécie de consciência externa para nós, homens e mulheres comuns. Independentemente de credo religioso, ideologia, gênero – e por aí seguimos na diversidade humana.

Meu querido amigo Michel de Montaigne dizia que esperava que sua morte não revelasse nada sobre ele que já não fosse conhecido pelo mundo dos homens, por dito e exposto em vida. Sua expectativa era de que tivesse percorrido um caminho que o distanciava da hipocrisia, até por ter nele próprio o olho mais agudo sobre seu comportamento e existência. 

Estamos tratando de um cara que se jactava por ser um “homem comum”, o francesinho, o que com ele também aprendi. Ele entendia, portanto, que era tão falível quanto qualquer pessoas, mas investiu na própria consciência para que esta apontasse as suas falhas de forma mais contundente do que o mundo de fora pudesse fazê-lo. Montaigne era assim: falava sobre ele como seu o fizesses sobre cada um de nós.

Não tenho nem nunca terei a grandeza dos personagens mencionados, mas os guardo como um modelo - talvez inalcançável -, não só para mim, mas para todos os bichos da nossa espécie.

Quanto à prevenção à hipocrisia, já vou confessando: não pretendo abrir mão do conforto que consegui alcançar, na reta final da minha corrida, cada vez mais caminhada. Verdade mesmo tem o meu amigo e poeta Sidney Wanderley ao afirmar que vivemos hoje – gente de classe média, que fique claro – melhor do que os mais ricos faraós e imperadores lembrados pela história. E graças ao avanço, em escala, da ciência e da consequente tecnologia.

Mas eis uma verdade que não muda: aprendemos muito e sabemos tão pouco, inclusive – e principalmente – sobre nós mesmos. E cá para nós, se a morte revelar sobre mim mais do que eu já expus em vida – algo que mereça ser de fato ressaltado -, peço desculpas, antecipadamente. 

Imagino que terei feito o que pude, ainda que insuficiente, nos meus “retiros espirituais”.