Crônica do Ricardo Mota: O mal se repete

24/03/2024 07:00 - Ricardo Mota
Por redação
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Numa pequena loja de um centro de compras, na semana passada, me deparei com um funcionário ouvindo pelo celular o depoimento de um criminoso, que havia matado  o irmão, no interior do estado.

Ao cumprimentá-lo, me deparei com a sua indignação, justa, diga-se de passagem, assim traduzida:

- As pessoas estão piores a cada dia. Antes não se via isso.

Calmamente, discordei dele e afirmei que o ser humano sempre praticou crimes chocantes, cuja narrativa nos faz sentir mal e traz-nos a sensação de que a nossa espécie abandonou qualquer limite moral – de bem e de mal –, nos tempos de agora.

- O senhor não vê os casos de estupros de crianças? Nunca aconteceu tanto!

O que me parece óbvio, e não é de agora, externei para ele: argumentei que um caso de abuso contra criança na Groenlândia, hoje, rapidamente se espalha no mundo, pela potência instantânea da internet. O pior, eis a parte que mais me incomoda, é que essa multiplicação da “notícia” não se dá apenas nas redes sociais.

Pois é: cada vez mais, a imprensa nossa de cada dia cai na armadilha de querer competir com as tais redes usando seus enredos e linguagens, em busca de cliques e audiência. Contribuímos, mais do que nunca, com o progressivo adoecimento da sociedade, sem qualquer respeito por quem está do outro lado - e sem que isso seja uma solução para a sobrevivência da imprensa profissional.

Há alguns dias, e comentei com alguns colegas, senti um gosto amargo ao ler, ainda que rapidamente, a primeira página de um site local – o que nunca mais havia feito. Lá estavam nada menos do que dez manchetes sobre feminicídios, facadas, estupros, atropelamentos e assemelhados. Como se a vida por aqui fosse somente um festival de atrocidades praticadas por pessoas comuns e como se isso fosse a grande novidade/revelação sobre a nossa sofrida população.

Não guardo a mínima pretensão de ser um ombudsman da nossa imprensa, até porque não me sinto suficientemente preparado para tanto. Entretanto, constato que a cada dia seguimos mais o rastro do sangue humano, o que não me parece o melhor jeito de nos tornarmos, de novo, mais relevantes.

Tristes os tempos, esses de agora, em que os “xerifes” da periferia - onde eles apontam que vivem os piores tipos humanos - se tornam astros pop, com presença obrigatória nos noticiários, dando os detalhes sórdidos de tal ou qual crime chocante. Repare: cada caso se encerra, para o grande público, tão logo ele se espalhe e vire tema de conversas entre grupos humanos de credos, classes sociais e formações as mais diversas. Amanhã será outro dia, e um novo crime será praticado com tanta ou mais perversidade. 

Não custa repetir Pierre Bourdieu, ainda em 1996 (Sobre a televisão), para quem “sexo e sangue” são garantia de grande audiência. O sociólogo francês fez a afirmação muito antes dessa “epidemia” – midiática, assim me parece – de estupros e abusos sexuais, por exemplo. Não que esse tipo de crime deva ser minimizado ou ocultado do grande público. Mas buscá-lo, por exemplo, nos recantos mais profundos do planeta para torná-lo atração fatal para leitores, espectadores e ouvintes, me parece mais o sintoma de uma doença que nos consome e para a qual ainda um antídoto.

O mal se repete - até porque a humanidade se repete tediosamente - sem que busquemos entender as razões da replicação de um comportamento que vem desde antes do surgimento do Homo sapiens, isso que nós somos ou nos tornamos (o que "evoluiu" foi a violência organizada, como no futebol, reproduzindo as antigas gangues).

Estimular o medo e o ódio coletivos, o que fazemos na prática, não nos ajuda a melhorar em nada. E se levamos a sério, como dizemos, um certo compromisso social, haveremos de fazer do nosso discurso institucional e/ou profissional a nossa prática honesta – se é o que de fato nos propomos a isso, para além da retórica.

Como espécimes dessa espécie, a que tanto desprezamos no “cotidiano sangrento”- este que invade corações e mentes via meios de informação formais e informais -, precisamos destinar a mais veemente indignação e o mais sincero questionamento ao fato de continuarmos alimentando a mesma violência primordial e delas nos alimentando.
 

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