Crônica de uma tragédia anunciada

05/12/2023 09:58 - Avança+
Por Rafael Brito
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Ela completou 60 anos em 2018, mas não teve o que comemorar. Junto com o aniversário, veio o diagnóstico de um câncer de mama e uma rachadura na parede de sua cozinha, depois de um tremor de terra que assustou os moradores do bairro do Pinheiro, na capital alagoana. A história da dona de casa Maria Maranhão é parecida com a de milhares de maceioenses que, desde então, lidam com a incerteza, a luta e o luto de quem perde, literalmente, o chão. Um assunto muito triste, principalmente para abordar no dia de hoje, quando celebramos o aniversário de Maceió. Ao mesmo tempo, uma discussão que não pode ser adiada.

A responsável direta pela tragédia tem nome e CNPJ: a Braskem, petroquímica de atuação global, que atua em Alagoas desde os anos 1970, então denominada Salgema. A lista de omissões, negligência e ausência de regras de fiscalização é imensa, desde antes de 2018, quando o desastre em curso se tornou público. Um fato mais recente, porém, chama a atenção de todos desde a sua assinatura: o pacto duvidoso firmado entre a empresa, já declarada culpada, e a Prefeitura de Maceió.

Segundo os termos do acordo, assinado em 20 de julho deste ano, a Braskem pagou à prefeitura o valor de R$ 1,7 bilhão, isso mesmo: um bilhão e setecentos milhões de reais. A "indenização" seria destinada à "obras estruturantes na cidade e à criação de um Fundo de Amparo aos Moradores". Desde então, faltam ações concretas e sobram questionamentos que a prefeitura precisa responder. 

O pagamento bilionário foi “reconhecido e declarado pelo município como suficiente para sua reparação integral, englobando compensação, indenização, honorários e/ou ressarcimento por todos e quaisquer danos diretos e indiretos, patrimoniais e extrapatrimoniais”. E o  mais grave: a decisão determina que quaisquer custos “presentes e futuros” foram abrangidos pelo acordo.

Um exemplo do descaso com todo esse sofrimento dos maceioenses: com a ameaça de desabamento iminente da mina 18, prefeito e prefeitura usaram as redes sociais para tratar do colapso sem citar o nome da Braskem. Com a crise gerada, apressou-se a tentar corrigir o "ato falho" e passou a usar, como tática, uma imagem de vitimização, como se fosse impossível esquecer o pacto de R$ 1,7 bilhões com a patrocinadora desse desastre.

A reação nas redes sociais foi imediata. A população não perdoou a omissão e cobrou uma posição mais firme em relação ao caos de informações instalado na cidade. Foi quando a prefeitura e os gestores municipais mudaram de estratégia, diante da crise de “imagem” já avançada. 

Só para rememorar, vale traçar uma breve cronologia dos fatos: ainda em 2019, um ano depois dos primeiros tremores de terra e das rachaduras deles decorrentes, estudos de mais de 50 técnicos do Serviço Geológico do Brasil (CPRM) apontaram que a situação de instabilidade no solo foi atribuída à exploração de sal-gema pela empresa Braskem.

Com a emissão deste laudo, o Ministério Público Federal ajuizou ação visando à paralisação da exploração de sal-gema, o cancelamento das licenças e o tamponamento das minas, com acompanhamento da Agência Nacional de Mineração (ANM). Já nesta ação, a Braskem foi condenada a adotar as medidas que o MPF requereu com base nas indicações técnicas da CPRM.

Apesar dessas medidas, os danos se alastraram levando os moradores do Pinheiro e bairros vizinhos como Bebedouro, Mutange, Bom Parto e parte do Farol ao caos, tanto emocional quanto financeiro. Uma ação visando a indenização dos moradores atingidos foi ajuizada pelo Ministério Público de Alagoas, junto com a Defensoria Pública do Estado na Justiça Estadual. A iniciativa teve a competência fixada na Justiça Federal e o Ministério Público Federal e a Defensoria Pública da União passaram a atuar no polo ativo da ação.

A partir de 2020, mesmo com as restrições impostas pela pandemia da Covid-19, milhares de pessoas começaram a ser realocadas preventivamente, num calvário que exigiu muita luta e provocou muito sofrimento aos moradores e comerciantes locais. Nesse período, Ministério Público Federal e Estadual negociaram um acordo de compensação socioambiental com a empresa. 

Pela ação, pactuada em dezembro de 2020, a Braskem passou a ter  obrigações de monitoramento e estabilização do solo, com preenchimento das minas; reparação pelos danos ambientais e pelos danos urbanísticos; indenização por danos morais coletivos; além de normas de compliance para que a empresa revise seus protocolos de atuação e não volte a cometer os mesmos erros.

Voltamos a 2023 e ao acordo firmado com a Prefeitura de Maceió. Nada foi feito de concreto e amplo para a realização de obras estruturantes nas regiões atingidas, como previa a indenização bilionária". Ao contrário do que se podia prever, não houve qualquer projeto anunciado, no âmbito da assistência, a fim de proteger as famílias e comerciantes que ainda sofrem os efeitos devastadores nos bairros afetados e em toda a zona de alcance da maior tragédia urbana do mundo.

No lugar de obras efetivas de planejamento e reordenamento urbano, a prefeitura anunciou a compra de um hospital privado no valor de R$ 266 milhões, aquisição que já está sendo investigada pelo Ministério Público de Alagoas. Ao invés de investir em projetos de mitigação e amparo das vítimas do desastre provocado pela ação predadora da empresa, a prefeitura continua gastando milhões com decoração natalina da orla da cidade, shows apoteóticos, sem falar dos R$ 8 milhões pagos para bancar o samba enredo da Beija-Flor, no carnaval 2023, do Rio de Janeiro.

Estamos fartos das ações mirabolantes de marketing. Queremos ações concretas. Foi para isso que o Governo Federal enviou para Alagoas uma força-tarefa de ministros  com o objetivo de buscar e aplicar soluções para todos esses problemas. É para isso que me coloco à disposição dos alagoanos para acompanhar, sugerir, fiscalizar e, sobretudo, me colocar ao lado do meu estado, que sofre com essa tragédia que poderia ter sido evitada, já que foi amplamente anunciada. 

 

 

 

 

 

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