O povo não tem rosto, e dele somos parte. Mesmo que o neguemos com frequência, se não quando lhe apontamos as virtudes. Mas será sempre a exceção, por nos julgarmos, em regra, acima dos que nos são semelhantes, não carregando os vícios comuns à massa humana.
Quem já experimentou a emoção coletiva em uma partida de futebol (sem relação aqui com torcidas organizadas), ou ainda em um grande show musical, há de saber que ali nos manifestamos de forma tão igual quanto é possível aos que nos circundam.
Mas naquele momento, se entendemos bem, nossa imagem se dissolve nas demais – passamos a ser mais um entre os anônimos. Resultado: extravasamos os nossos sentimentos sem o medo da repulsa, sem culpas, portanto.
Mas há um ponto de virada: o momento em que o anonimato passa a rimar com covardia, escapando da tal "emoção coletiva". Como blogueiro, já há alguns anos, pude constatar, e sem dificuldades, que "gente com olhos no chão, sempre pedindo perdão” (Vinicius de Moraes) se transforma no mais desaforado cidadão, disposto a enfrentar os piores inimigos numa guerra sem fronteira.
O anonimato lhe garante a coragem que falta no dia a dia, em gestos simples e que seriam importantes à transformação, por menor que pudesse ser, do mundo em que vivemos e que tanto rejeitamos. Votar sem utilitarismo pessoal, por exemplo, poderia ser um bom começo.
Às vezes, confesso, me irrito, mas sigo em frente, até entendendo o desabafo do leitor anônimo – o que vale para todos os gêneros -, sem aturar as agressões gratuitas de quem quer que seja ou a quem quer que seja. Os excessos e as extravagâncias serão sempre condenáveis e deletáveis pelo blog.
No trânsito, é ainda mais evidente, se queremos ver, a metamorfose que o anonimato propicia. Quanto mais escuro o vidro do carro, mais agressivo – quase sempre – o motorista. Oculto, ele é capaz de atrocidades inimagináveis se os carros não dispusessem hoje do necessário conforto do ar condicionado, principalmente no verão inclemente dessas plagas.
(E os motoqueiros, com seus capacetes que os fazem homens sem rosto, tornaram-se os "gladiadores" modernos. Tão vulneráveis!)
É a nossa contribuição diária à violência, que sempre atribuímos aos outros e que desconhece condição social ou até mesmo idade (imaginando-se que os mais velhos deveriam trazer alguma serenidade recomendável).
Lembro-me de uma entrevista do humorista Angeli reclamando dos seus leitores, que lhe enviam torpedos demolidores pela internet, por não aceitarem suas cáusticas críticas às celebridades e aos que fazem o poder. Ora, não há humor a favor, ou politicamente correto.
E o velho chargista desistiu de se comunicar com seu público, encerrando a carreira no ano passado, após a descoberta de uma afasia progressiva. Despediu-se, assim, imagino que de maneira involuntária (?), do anonimato, que se revela irmão gêmeo da intolerância e torna a convivência impossível entre os diferentes, mesmo os que já lhe pareceram semelhantes.