Não lembro como nem quando isso começou. Mas o fato é que as datas perderam importância na minha vida, e delas só lembro se lembrado for. Pago um preço alto por isso, quando esqueço aniversários e outras efemérides - nem sempre minha mãe vem em meu socorro, do alto dos seus 94 anos.
Por que sou assim?
Talvez seja porque entendo a vida, hoje, como dias que se sucedem, um após o outro, igual a uma roda-gigante, com suas subidas e descidas. É verdade, eu já estive no ponto mais baixo, onde a dor faz morada à espera de uma nova visita. Mas também já cheguei ao reino da alegria, cujo cenário é o imenso azul que nos envolve, até se desmanchar feito a espuma do mar.
Saudosista?
Tantos dos nossos leitores de domingo já disseram que eu sou, sim. Não como acusação ou crítica, espero, mas talvez porque cada um de nós que segue em frente sem querer trapacear o calendário traga mesmo um tanto de saudade dos tempos idos. A memória, é verdade, se faz sabiamente seletiva para que mantenhamos a necessária sanidade da alma. Se guardássemos tudo o que vimos e passamos com a mesma intensidade, talvez desejássemos, em algum momento da existência, que o ponto final se antecipasse a algumas vírgulas e pontos-e-vírgulas.
Claro está que gosto mesmo é de contar algo que vivi, presenciei, ouvi, porque isso faz parte da arte de "João Passarinheiro", personagem de Mia Couto, em "Cada Homem é uma Raça":
- Cada pessoa é uma humanidade individual.
Eis, pois, mais um indivíduo que não se imagina só e sem compromisso com os demais 8 bi de humanos (parimos mais do que ratos).
Confesso que em nada me incomoda ver no espelho a imagem do homem encanecido, cabelos cada vez mais raros, as rugas se apresentando como inexoráveis companheiras de caminhada - elas contam parte da minha história. Perdoem-me aqueles que discordam da minha observação a seguir, mas não consigo deixar de considerar um tanto ridículos os homens que tingem os cabelos e pelos do rosto, imaginando que estão enganando os interlocutores. É onde entra Machado de Assis: "Envelhecer sem dignidade é a última peça que a natureza prega ao homem".
Faz-me um bem danado a constatação de que valeu a pena ter dez anos quando os tive; vinte, quando eles me chegaram - e por aí vai. Por mais que eu saiba que os problemas de então, em cada fase, algumas vezes pareciam sem solução, vejo que eles ajudaram a me construir com qualidades e defeitos – mais até defeitos, creio. E eu estou aqui ainda: humano, demasiado humano.
Claro, gostaria de ter podido mudar um tanto do roteiro que cumpri. Mas a gente aprende até a lidar com as impossibilidades. Sinto falta dos meus queridos que se foram, mas trago-os em mim como se sempre assim tivessem sido - parte do meu lado melhor lado. Entendo hoje que a compreensão da morte tem me ajudado a viver.
Penso nos da minha geração com certo orgulho. Construímos, sim, algo de novo. Beneficiamo-nos das conquistas dos que vieram antes de nós, é bem verdade, mas também tivemos os nossos méritos: brigamos, quebramos tabus e se muitos preservamos os valores do Humanismo, com certeza, isso evitou que tivéssemos ido além do que já fomos na desenfreada corrida para o tempo do "eu sozinho." O exacerbado individualismo sempre existiu, mas ainda não havia virado uma praga social.
Algo que me exaspera na "era dos vencedores" é a crescente cobrança a crianças e adolescentes para que eles/elas sejam grandes profissionais - os melhores no que escolherem, passando a ser esta a principal obrigação que terão de carregar nos ombros. Abrir caminhos com os próprios cotovelos é, também, construir dentro de si um imenso e impreenchível vazio. Eles merecem mais do que isso.
Vou continuar insistindo no tema, até porque acredito que se a alternativa de se fazer humano e aprender a chorar ante a beleza parece romântica, tola e infantil, do outro lado o que se apresenta é o nada, o mais gigantesco lugar para alguém se perder.