Passava pouco das seis horas da manhã, de uma sexta-feira cinzenta, tão imprópria para a estação. Afinal, outubro, aqui pelo lado de baixo do Equador, em outros tempos anunciaria a plenitude da primavera. Tudo bem que no Norte do planeta o outono já prepara a chegada do inverno - se é que a gente pode considerar que as estações ainda se respeitam.

Mas tudo na vida tem um “de repente, não mais que de repente”, e este chegou aos meus ouvidos de uma forma nada branda, como se reclamasse a ausência da luz solar - que, entre outras coisas, parece mesmo ser matéria-prima para a nossa usina de vitamina D. 

Sim, e daí?

- Filho da puta!

Não, meus caros e minhas caras pacientes leitores, não era comigo. Logo percebi que o motorista que fazia o retorno com seu carro naquele trecho do Murilópolis, furibundo e quase apoplético, homenageava outro colega de infortúnio – dele, que fique claro. O “inimigo” não tardou a vociferar, na mesma linguagem culta do submundo da espécie, que encontra cada vez mais dificuldade de convivência consigo própria. 

Os outros?

São o purgatório. O inferno mesmo, aquele que atormenta no dia dia, queima em fogo brando e permanente  dentro das pessoas, eis o busílis. E aí resta o dilema: espalhar a infelicidade, na tentativa de torná-la mais leve aos ombros cansados, em qualquer idade, ou...? Bem, me parece que as alternativas vão se escasseando nessa quadra da vida humana.

Em casa, já após a minha corridinha matinal, vou ao noticiário, onde a guerra suja – porque toda guerra é suja –, que vai alimentar novos e velhos ódios, segue em ritmo de videogame. Feito um vampiro, ela vai consumindo as almas, inclusive as dos que, por aqui, torcem para que o conflito, cujas vítimas são civis, quase que na totalidade, não acabe tão cedo. Afinal, a tragédia alheia, em qualquer dimensão, parece mesmo atenuar as dores próximas do cotidiano. 

Não é um pouco desproporcional?

Sim, mas se está longe, torna-se mais um “estudo de caso”, sobre o qual é possível discorrer, argumentar e, quem sabe, definir finalmente de quem é a culpa pela barbárie. Além disso, "a História só é escrita com sangue", não é mesmo?

Nós?

Ora, o mundo é um imenso laboratório onde as experiências se sucedem para que possamos, ao fim e ao cabo, concluir que o Homo sapiens é o tal. Aliás, já havia conseguido eliminar outras espécies – o Neandertal, por exemplo – para que os seres superiores pudessem reinar pelo medo e pela força.

Pode-se até repetir - em latim: “Homo homini lúpus”. Ainda restando, no entanto, a pergunta: e nós estamos na turma do lobo ou dos que não se reconhecem como lobo?

Tem sido sempre assim, é a nossa natureza, dirão os mais sisudos e compenetrados na perscrutação da essência da espécie. Mas precisaríamos chegar tão baixo (desculpem o comentário distraído e sem ciência)?

Hoje, ressalte-se, briga-se por qualquer coisa, ainda que se mate menos na vida corrente do que em outros tempos. Resultado do avanço civilizatório, até podereis dizer. Mas só para entrarmos na espiral da qual não parece haver escapatória: melhoramos porque o lado de fora assim nos cobra e porque regatear o preço da persistência dos mais primitivos instintos não se apresenta como uma possibilidade ao “homem comum” - esse bichinho tolo, arrogante e dominante, que aprendeu onde arrombar a cerca. Pelo menos a maioria.

Os dias, como esse outubro tropical, chegam mesmo estranhos. As brigas nas ruas, discussões de trânsito de alto grau de letalidade, embates no Congresso Nacional, aonde os ogros finalmente chegaram sem nenhuma resistência - eis o pacote do momento, que teremos de desembrulhar para achar o trigo (e ele há, garante a boa nova) em meio às ervas daninhas. Até porque não dá para consumir o veneno dos dias sem sentir o gosto amargo da separação, provocada principalmente pelo que se anunciava como o grande encontro dos homens, até mais poético do que o mar de Pessoa.

É finda a manhã, e eu rumo para um compromisso inadiável - com a cadeira de dentista. Vou sereno, tanto quanto consigo, mas cismo de parar na faixa de pedestre, onde um cidadão de meia-idade sinalizava que iria atravessar (aviso aos que ainda seguem na leitura: liguei o alerta, puro ato reflexo):

- Biiiiiiiiiiiiiiiiii!

Assim mesmo, contínua e nas alturas, a buzina do carro de trás repete, simbolicamente, a frase que ouvi às primeiras horas da manhã – e se ali não era comigo, aqui tudo apontou em minha direção.

Houve susto?

E por que não?

Antes de terminar o dia, que ainda teria – e teve - leitura e cinema, concluí:

- Como as pessoas têm pressa de morrer!