A memória trai mais perigosamente do que o mundo externo, porque o faz por dentro, formando convicções mais difíceis de serem desmontadas pelos fatos.

Que fatos? 

Pois é. Revisá-los apenas com base em lembranças, que vão se modificando ao longo do tempo, ganhando cores e sabores diferentes, pode não ser um caminho absolutamente confiável, ainda que seja praticamente o único possível quando do nosso encontro de contas.

Pelo menos por ora não desejo fazer um balanço da minha já longeva trajetória. Sim, considero que 65 anos de idade já é tempo suficiente para se buscar passar a limpo os feitos e os nem sempre bem-feitos. Mas essas coisas ou surgem naturalmente, por necessário, ou são postergadas pela própria memória, arredia e precavida.

Eis que na semana que passou assisti ao ótimo O sentido do fim, filme inglês, baseado na obra de Julian Barnes, com Jim Broadbent e Charlotte Rampling, ambos sendo garantia de interpretações no padrão britânico, revelando muito em gestos minimalistas e em expressões contidas – uma escola que admiro na arte de interpretar.

A história é adorável, mas não pretendo dar spoiler – já aviso de pronto. É um filme em que os mais maduros ou envelhecidos, principalmente estes, podem até acionar o gatilho de suas recordações, convocando-se para uma revisão de fatos e versões. 

Estas últimas são o que ressalto porque revivemos a nossa própria história, se a olhamos pelo retrovisor, como escravos das versões que estão registradas na nossa galeria de memórias, em que obras antigas vão cedendo espaço a construções recentes, num processo tão natural quanto o esquecimento. Lembrar e esquecer são os lados da mesma moeda com a qual pagamos pela nossa sanidade.

De quadros esmaecidos a aquarelas vibrantes, todas as imagens expostas nos parecendo reais, não fossem a ficção de si próprias, compõem um enredo que vai se construindo independentemente da vontade do “dono” da tal galeria.

Mas eis que a obra de Barnes pode nos levar, e isso me sabe a uma provocação da melhor qualidade, a acontecimentos que gostaríamos de ver apagados da nossa história. Se não, podemos até desconfiar de que ações do modo “esquecimento” já se encarregaram um bocado da sua missão – e com sucesso.

Imagino que quando se fizer necessário - e se o tempo permitir -, cada um de nós há de tentar fazer seu encontro de contas. É correr o risco de concluir que os débitos ultrapassaram os créditos. Claro que se recomenda que o julgador busque situar cada acontecimento no seu tempo e circunstância. São atenuantes fundamentais. 

Um tal Joaquim Maria, que também assinava Machado de Assis, dizia que “o menino é pai do homem”. Há de ser. Misture o escrito acima com Oscar Wilde, outro filósofo cínico, e teremos uma fórmula de justiça que pode ser bem mais razoável. O que ele escreveu: poucos de nós têm a chance de perdoar nossos pais. É mais do que um jogo de palavras - e pode ser sabedoria das boas.  

O filme mostra que podemos estar, sem perceber, às vezes, no meio de uma história possível, a nossa, a de cada um, em que o vivenciado há de nos parecer suficiente para que nos sintamos bem com as nossas permanências atuais, somando perdas e danos com a vida adquirida.

Cá para nós, fui dormir com uma certeza que pretendo que continue comigo enquanto eu tiver consciência das coisas do mundo: eu posso contar aos meus filhos e netos, sem baixar os olhos, o enredo que tenho construído. Nada tão maravilhoso, que mereça ser replicado; nada tão terrível, que precise ser ocultado. Enfim, a vida de um homem comum.

(Se bem me lembro.)