Já assisti algumas vezes ao maravilhoso documentário O Chaplin que ninguém viu (David Gill e Kelvin Brownlow), presente do amigo querido Robson Marabá. Faço-o porque preciso, de quando em vez, me encontrar com ele e até tentar compreender como um homem tão comum nos seus sentimentos e credos pôde ser também um gênio – ainda que vendo, quase sempre, a felicidade lhe escapar pelos dedos, num enredo trágico.
Eu que já li tanto sobre o personagem tão especial, inclusive sua autobiografia, vi outros documentários, além do ótimo filme sobre sua vida - com uma interpretação fantástica de Robert Downey Jr. -, encontrei nesta obra um tesouro para quem ama os filmes de Chaplin: os caminhos erráticos seguidos por ele na construção de cada um dos seus clássicos.
Antes de qualquer coisa, vou repetir o que já disse neste espaço em outras oportunidades (se é que alguém ainda lembra): não consigo imaginar o cinema como a incomparável arte de fazer rir, chorar e pensar, sem que houvesse Chaplin - não fosse ele a presença inaugural a dar tanta grandeza a essa fantástica criação humana.
É isso: Chaplin, eis a minha opinião, inventou o cinema como forma de arte definitiva e única.
Volto sempre aos seus filmes porque isso se tornou uma necessidade vital para mim. Exatamente assim: a vida exige e me cobra momentos de comoção extrema, de uma amável bipolaridade – o choro, o riso – a que me permito sem reservas e sem a qual este velho jornalista não teria chegado até aqui com o gosto entranhado de ser humano. E olha que acredito, racionalmente, que teria até mais motivos para dizer o contrário.
Num dado momento de um dos três episódios que compõem O Chaplin que ninguém viu, dei-me conta do quanto é antiga a minha relação com o maior de todos os clowns. Lembrei-me que desde menino costumava imitar aquele que foi o seu principal personagem, e ouso dizer que até me sentia o próprio Vagabundo, a caminhar quase correndo, em pequenos saltos, o corpo em movimento pendular, os pés abertos, girando na mão direita um guarda-chuva, o meu arremedo de bengala.
Talvez fosse apenas um menino bobo, que até divertia outros iguais, e eu me divertindo mais do que todos.
Olha, gente, isto pode ser apenas uma mentira da memória, não importa. Não terá sido a primeira nem será a última. Mas aquele momento de reencontro do menino com o palhaço valeu algumas horas de existência (Dostoyévski dizia que nos basta uma boa lembrança para a vida valer a pena).
A primeira – e talvez a maior – revelação do documentário: Chaplin não trabalhava com roteiro. Ele ia criando seus enredos à medida que as cenas iam surgindo para ele com a clareza que só o seu gênio era capaz de captar e enxergar.
A cada solução encontrada, cuja sequência ele próprio desconhecia, um novo problema surgia, exigindo que o seu talento criasse os passos seguintes, atendendo à necessidade urgente de salvar um filme à beira da morte - sem um final.
Ele era um diretor completo, ainda que sem roteiro. Fazia a música tema dos seus filmes, desenvolvia o gestual e a fala de cada um dos personagens e parecia convencer os seus atores e atrizes de que não havia outra maneira de interpretar o papel que lhes cabia a não ser aquela que ele magistral e generosamente demonstrava. Dizia-lhes apenas: “Não se esforce na cena. Vá com calma”.
Um conselho que não servia para ele, ressalte-se. Chaplin tinha pressa, embora pudesse passar quase dois anos imaginando, conjecturando, exercitando até concluir a forma definitiva de uma cena. Foi assim com o encontro do Vagabundo com a vendedora – cega – de flores em Luzes da Cidade. O resultado é pungente e incrivelmente divertido.
Encanta-me saber que este era o seu filme preferido - é também o meu. Uma história tão simples e tão carregada de humanidade, como poucas obras-primas urdidas pelos maiores artistas que o mundo já conheceu. Não consigo resistir à cena final, ainda que a saiba de cor, a cada frame do filme. A lágrima tomba sobre as inevitáveis rugas.
Ali, senti um bigodinho coçando abaixo do meu nariz de afrodescendente – eu me reconheci, mesmo que só por um momento, como um pedaço, ainda que minúsculo, do Vagabundo.
Mas não ter uma história para contar e ter de contá-la?
Foi assim, gente, que Chaplin construiu sua obra definitiva e comovente. Nas palavras de Jackie Coogan, o ator prodígio que fez o papel tocante do menino abandonado em O Garoto:
- Ele não tinha uma história. Só pedaços de uma história.
Existe uma metáfora da vida mais perfeita do que esta?