Desculpem-me leitores e leitoras mais exigentes: não consegui, ao longo da minha já extensa existência, desenvolver um gosto mais sofisticado por café: gourmet ou especiais, nada disso. Sorvo todos, sem distinção, porque meu paladar nessa seara – e em outras também - continua rústico, como nos tempos da velha casa da Buarque de Macedo.
Passei por redações diversas, mas uma coisa era quase sempre igual: o café, sem sabor que mereça uma descrição mais detalhada, e até sem o gosto peculiar da bebida. Fato é que o velho pretinho sempre me convidava a repeti-lo em generosas porções, sendo desejado a qualquer hora do dia ou da noite. Por entregarem o que prometiam: a sensação de que a energia era coisa para se beber – pelo menos naquele ambiente de viciados em cafeína.
A história dos grãos tão especiais para a propaganda do Brasil mundo afora – café e Pelé - comporta, digamos, pelo menos uma breve ficção, creio que boa demais para que eu não divida com os que que não a conhecem e insistem em perder minutos preciosos do seu domingo com a leitura destas linhas tão mal traçadas.
Conta-se que um criador de cabras etíope, no século VIII, notou que seus animais, desanimados ou até doentes, após ingerirem algumas frutinhas vermelhas, comuns pelo pasto em sua volta, logo se animavam – ganhavam fogo novo.
O que fez ele, Kaldi chamado?
Resolveu mastigá-las também. Sentiu-se tão bem, logo após, que resolveu levar uns poucos grãos para um mosteiro próximo, onde a malária fazia suas vítimas. Imaginou que nos pequenos frutos poderia estar um bom remédio para as febres e o cansaço demolidor, que a doença provocava.
Não conseguiu convencer os homens do conhecimento e/ou da fé. Um deles então, o imã, decidiu atirar alguns frutinhos no fogo, em pura atitude de desdém. O aroma que subiu com a fumaça era um inesperado e promissor sinal: o próprio Kaldi recolheu os grãos torrados e acrescentou-lhes água fervente. Ao fim e ao cabo, estava fazendo história, e no ano de 750 foi passada a primeira xícara de café.
E como muitas vezes a ficção se sai melhor do que a realidade, hoje o nome do pastor etíope batiza cafés e cafeterias espalhados pelo mundo, conta o historiador americano Timothy C. Winegard, no seu espetacular Mosquitos: Kaldi’s Wholesale Gourmet Coffee Roasters, Kaldi’s Coffee Roasting Company, por exemplo, perpetuando a imagem do pastor humilde e curioso.
(Uma dica: o livro é bom demais para que você o tome apenas por esse momento de relaxamento. Ele traz a história de todos os grandes conflitos humanos, as guerras entre países e povos antigos e nem tanto, contando com dois protagonistas inesperados: os generais Anopheles – principalmente este - e Aedes aegypti, os bicudos e incômodos bichinhos que atazanam as nossas vidas e, como se não bastasse, ainda nos deixam prostrados sempre que inoculam os vírus que nos amam – mesmo que não sejam correspondidos.)
Segunda commodity – legal – “mais valiosa do mundo, depois do petróleo”, o café fez fama e não deita na cama. Bebida preferida de boa parte dos intelectuais do Ocidente, já reunia em meados do século XVII, na Europa, filósofos, romancistas e revolucionários, que se abasteciam nas xícaras fumegantes para um bom embate de ideias nos espaços criados para sorvê-lo, e ainda emprestando seu nome de batismo ao uso do espaço comercial.
As cafeterias, que tomaram recentemente novo fôlego como ponto de encontro por aqui, já têm muitas histórias para contar no Brasil. E até no pequeno estado de Alagoas. Na década de 1930, o Café Central (ou Café do Cupertino), numa esquina da Rua do Comércio, em Maceió, reunia em torno da mesma mesa: Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Aurélio Buarque de Holanda, o poeta José Aldo e sua esposa, Raquel de Queiroz - a única mulher entre homens que, assim como ela, marcariam seus nomes na produção intelectual e artística do Brasil.
Sem nada para deixar à posteridade, eu continuo tomando o meu café, diariamente e em várias rodadas, como se fosse um elixir da juventude, ainda que meramente passageiro.
Se tenho alguma preferência?
Preto, forte e quente. Apenas isso.

Ricardo Mota