Eu aprendi, e faz tempo, que não se lê poesia: degusta-se, pausadamente, mas com o apetite de um glutão lerdo. Talvez por isso a minha indomável rejeição às declamações, muito embora reconheça que algumas até me chegam à alma. E há de se perguntar: foi o poema ou o (a) intérprete que fundiu meu coração com minha mente, mesmo que só por um instante?
Tive como mestre nessa seara, ainda nos primeiros anos da minha juventude, um poeta tão grande que nem sempre é alcançado pelo olhar displicente das gentes locais, talvez pela dificuldade que temos de reconhecer nos próximos o talento que enxergamos naqueles a que apreciamos de longe.
“Poucos homens foram admirados pelos da sua casa... Ninguém foi profeta não apenas em sua casa, mas em sua terra... Em minha região da Gasconha, acham esquisito ver-me impresso. Na medida em que o conhecimento que tomam de mim vai se afastando de minha morada, valho tanto mais”.
A citação acima é de um dos personagens com quem convivo tão intimamente quanto seria impossível se fôssemos contemporâneos – o tempo e a distância deram-me a chance de conhecê-lo sem timidez. O nome: Michel de Montaigne, século XVI, que lançou desde lá suas garrafas ao mar, e até hoje elas estão sendo recolhidas por pessoas comuns ou por outras que passaram a se admitir assim depois que o conheceram (o meu caso, confesso).
Mas eis que o poeta Sidney Wanderley não é uma pessoa comum. Claro, naquilo em que ele se empenhou a vida inteira, como um trabalhador braçal, esquecendo até - pelo esforço insano que lhe dedica - que é “apenas” um artista.
Tudo isso para contar, o que já não é novidade, que meu amigo poetinha (diz-se que amigo é aquele que nos conhece muito bem e ainda assim gosta da gente - e vice-versa) lançou recentemente uma coletânea sessentona com alguns inéditos: Antes do fim, anunciada como mais uma despedida do seu fazer - o que nunca acontecerá. Porque o poeta vive, e quando morto, a sua poesia tratará de causar espantos e sustos entre os que ficaram ou ainda virão, mesmo aqueles incrédulos da imortalidade.
Ele nos ensina que o desafio da poesia não é dizer, mas, sim, dizer com poucas palavras aquilo que de tão universal e prosaico se torna invisível. Vejam o caso d’ A velha:
Com sua mão nodosa e crispada
pelas dores da artrite malfazeja,
ela colhe, uma a uma, as torradas
coloridas no sol tênue da manteiga.
E depois de ter a fome atenuada,
remigra para dentro de si mesma.
Bernard Shaw bradou que “todo trabalho intelectual é humorístico”, e este poeta, universal e atemporal, creu e provocou o senso comum com o feminista A mulher de Lot:
Nem sequer um nome me deram.
Pouco importa, não é hora para queixumes.
Numa estátua de sal me converteram
por uma simples olhadela para trás:
é que me bateu, doída,
uma enorme saudade de Sodoma.
Melhor que olhar para frente
e avistar o degenerado do Lot,
sob a esfarrapada desculpa do vinho,
a emprenhar as meninas que amamentei.
Pois é.
E se filosofar é mesmo aprender a morrer, máxima de Cícero - que flertou com o estoicismo -, o bardo viçosense nos diz para onde navega (seu) O rio interior:
Também em mim corre um rio
de rubras, espessas águas
por frágeis dutos.
Se essas águas desistirem da viagem,
Uma grande sombra descerá sobre meus olhos:
não mais manhãs,
não mais amigos,
não mais poemas.
E eu, que tanto amei a solidão e o silêncio,
terei de provar que fiz por merecê-los
- quando o rubro rio estancar sua corrente
e este corpo for só notícia do ausente.
Ainda não é tempo, mas imagino que, quando for, ele não se queixará: não é próprio do poeta passar.
Ricardo Mota