Em alguns verões da minha infância/adolescência, a praia da Avenida da Paz, então território dos nossos acontecimentos e desejos, nos trazia um atrativo a mais: os “tatuzinhos”, pequenos crustáceos que se enterravam na areia, lambida pelo mar em carícia correspondida, imagino.
Só anos depois fiquei sabendo que aquele pequeno parente do camarão, que prometíamos levar para a panela - sem nunca fazê-lo -, chamava-se “corrupto”, um substantivo que virou adjetivo na política brasileira.
Que me perdoem aqueles e aquelas que esperavam por um ataque contundente ou malicioso ao personagem tão presente na vida política nacional. Não é o caso, até porque esta espécie de corrupto existe em todo o planeta, endêmica, podendo tornar-se epidêmica - a depender do modo como a tratamos. Onde há poder e grana, os homens de almas sujas se multiplicam com muito mais velocidade.
Aliás, se os corruptos públicos existem e são iguais no mundo todo, a diferença está em como as sociedades lidam com eles. Os brasileiros, creio, somos bastante tolerantes, embora falemos mal demais dos tipos, sem que eles sejam seriamente incomodados por aqui.
O historiador Leandro Karnal, alvo preferencial nas últimas semanas da fúria dos redistas homofóbicos – onde eles se sentem à vontade para vociferar e destilar o ódio –, cunhou uma frase definitiva, assim acho, sobre o tema: "Não existe país no mundo em que o governo seja corrupto e a população honesta, e vice-versa".
Para muitos, no entanto, a corrupção é tão somente uma questão de valores, de quanto - não de ações e danações. O praticante, neste caso, avalia que corrupto é quem rouba muito, e se autoriza a cometer pequenos e médios deslizes no cotidiano. Fico aqui com Montaigne, que aponta para esses “inocentes” com uma indagação para lá de procedente: “Se fazem assim com alfinetes, o que não farão com escudos (dinheiro)?”
Há também aqueles que pagam propina ao agente público e acham que corruptos são apenas os que recebem l'argent. Não se trata aqui de uma condenação ampla, geral e irrestrita, mas, seguindo os conselhos de Maquiavel, é prudente para quem se guia pela moral privada ficar sempre longe dos negócios públicos.
(Isso não tem qualquer relação com lei e justiça, até porque sabemos muito bem como terminam os julgamentos nos endogrupos.)
Mas o corruto de que eu deveria tratar aqui, exclusivamente, é objeto de uma ótima descoberta científica: depois de quarenta anos de estudos, um grupo de biólogos identificou o Callichirus corruptus como uma espécie única, só encontrada no litoral brasileiro.
Este “corrupto do bem” made in Brasil precisa ser preservado, defendem com justiça e conhecimento os cientistas. O nosso difere morfologicamente das espécies semelhantes espalhadas por outros países das Américas e também é fundamental para o equilíbrio do ecossistema, ajudando na recomposição da matéria orgânica nas praias e na reciclagem de nutrientes.
Não esqueçamos nunca: as espécies surgem na Natureza ao acaso, mas nenhuma delas vive ao acaso. Se está ali, naquele habitat, é porque cumpre função essencial para o bioma. Isso já serviu até para nós, Homo sapiens, antes que nos tornássemos dominadores/destruidores do planeta. Tem mais: guiando-nos apenas por uma visão antropocêntrica, em nosso interesse próprio, podemos nos beneficiar muito e sempre da preservação da diversidade.
Por exemplo, lembra o biólogo Edward Wilson (A criação), que numa plantinha de Madagascar foi descoberta a substância usada no tratamento, com sucesso, da leucemia aguda infantil. E segue: a pesquisa em um fungo encontrado na Noruega possibilitou os transplantes de órgãos. Tão impressionante quanto: da saliva de sanguessugas – não humanas – desenvolveu-se um solvente que evita a coagulação do sangue durante e após as cirurgias.
Só isso já deveria ser suficiente para que nos empenhássemos na preservação do nosso “corrupto do bem”. Até porque ele é muito mais vulnerável à extinção, por ação humana, do que o outro, resistente até mesmo a uma bala de prata.