Quem teima em acompanhar este espaço domingueiro há de saber que a minha vida social é raquítica, sofre de certa anorexia natural, que me parece cada vez mais saudável. Mas isso é outro papo.
De quando em vez, confesso, gosto de ir aonde possa encontrar gente interessante, de humor inteligente, a quem hei de ouvir com prazer.
Era o caso daquele fim de tarde, no lançamento de um livro em um espaço pra lá de agradável. Além do mais, serviam acepipes de raro bom gosto. Passei, discretamente, a me fartar, enquanto alimentava minha curiosidade de bem-saber com as falas de outros convidados.
Eis que um dos companheiros de mesa, um intelectual local que eu respeito muito, ao ver o talentoso chef que nos proporcionou aqueles instantes de prazer, chamou-o e mandou ver - com tom de autoridade:
- Excelente! Com aroma algo terroso e notas de castanhas e amêndoas, combinadas com traços de regionalidade agridoce.
-!?
O chef fez uma reverência de manifesta gratidão, mas acho que identifiquei no seu sorriso, discretíssimo, um laivo de ironia. Eu, glutão de gosto gastronômico simplório e duvidoso, apenas debochei internamente da ignorância que carrego: minhas papilas gustativas não atingiram o nível de sofisticação capaz de fragmentar sabores diversos numa única garfada, principalmente sabendo a traços e notas específicos - o que não deixou dúvidas, naquele momento, quanto à sapiência do mestre.
Lembrei-me dessa história na semana retrasada, ao ler a notícia sobre o fechamento do Doma, famoso restaurante em Copenhague - eleito cinco vezes o melhor do mundo (?). Provavelmente, pelos adeptos da boa culinária ocidental, com destaque para os países europeus. E nem adianta argumentar que cada povo tem sua cultura culinária – esta é uma questão de hierarquia para a turma que se identifica, e às vezes sem razão de ser, com o grand monde.
Fato concreto é que a gastronomia ganhou ares de alta cultura, sob o protesto do escritor e erudito Mario Vargas Llosa, que esclarece: cultiva-a, sim, mas onde é o seu lugar – à mesa. Porém, mais do mais do que isso, o tema passou a animar conversas de boçais em todo o planeta. Uma gente que, quase sempre, rega com vinho de "traços e notas" diversos sua oratória exibicionista e indigente.
Gastronomia é cultura, sim, mas com o melhor sentido sociológico/antropológico: cada povo traz seus cheiros e sabores, que perpassam gerações e lhes dão uma identidade não menos sofisticada do que a coroada culinária internacional/ocidental.
Minha memória afetiva, quase proustiana, me remete aos guisados de Dona Anatildes, minha avó, à galinha à cabidela de Dona Lucinha, a mais perfeita chef a misturar os ingredientes de uma rica feijoada, dando ao prato o sabor que me fez, tantas vezes, sentir-me um aspirante a rei na mesa de domingo da velha Buarque de Macedo.
Claro, ambas sem carregar o honroso título de chef (oficial), hoje só concedido em cursos acadêmicos comandados por professores – é a narrativa que já ouvi de vários ótimos profissionais – tiranos, grosseiros e desagradáveis.
Eles seguem a máxima de sempre: para ser feliz é preciso sofrer – e muito. Um ensinamento valorizado e difundido por várias religiões espalhadas pelo planeta. A dor e a alegria devem estar presas por uma grossa corrente, e seguem a mesma ordem: esta só após aquela.
Talvez tenha nascido daí a arrogância de alguns conhecidos chefs – e há muitos e muitos bons, não generalizemos -, a sugerir e nunca revelar os segredos dos seus pratos, únicos, objeto de narrativas e comentários pretensamente eruditos. Alguns cultivam o hermetismo, parte fundamental do seu marketing pessoal; outros se tornam astros pops, a ocupar generosos espaços nos meios de comunicação.
Mas quem acredita que essa é uma invenção dos nossos tempos, vale lembrar uma pequena passagem do livro Deipnosofistas, do século II, assinado, provavelmente, por um “especialista” de então:
"De todos os temperos, o mais importante na cozinha é a fanfarronice".
Que maldade!

Ricardo Mota