Gérson, o Canhotinha de ouro, fumava no vestiário, no meio das partidas mais disputadas, inclusive da seleção brasileira. Há algo mais inimaginável hoje do que uma cena semelhante?

Pois é, mas como era especial ver o meio-campista desfilar nos gramados, quase que em câmera lenta, clássico, cerebral, fazendo lançamentos para onde só ele enxergava – pelo menos antes que os outros jogadores descobrissem o futuro destino da bola. Talvez ele, o técnico em campo do escrete de 1970, seja uma boa síntese do futebol pelo qual eu me apaixonei.

Hoje, com a mudança dos ventos, antes de se tornar um jogador de futebol, o candidato a craque precisa ser um atleta. Só que o campo ficou pequeno demais, e como imaginar um bailado num palco em que só há espaço para uma fotografia 3 x 4? 

Essa evolução aconteceu em todos os esportes, graças ao avanço científico, que permite projetar o desenvolvimento físico, as valências de cada atleta, e investir em especificidades - como a alimentação, por exemplo - capazes de torná-lo pleno durante toda uma exaustiva partida.

Quem poderia ser contra isso?

O que não consigo deixar de fazer, quando provocado, são comparações sobre a beleza, a magia do esteta, que caminhava em passos lentos pelo gramado, como Gérson, como Roberto Menezes e, sim, como Ganso, último remanescente de um esporte em permanente mutação. Todos: arcos precisos para flechas nem sempre certeiras. Foi gente/gênio assim que me fez um apaixonado por futebol, bem antes de virar o que eu me tornei agora: um atento espectador.

Fiquei pelo meio do caminho?

Mais ou menos. E haverá quem me chame de saudosista, ultrapassado, romântico e até "reacionário” - mas fazer o quê? 

Confesso que me agrada, e muito, ver os traços de poeta nervoso de Messi, girando em torno de si, como um objeto não identificado em meio a atônitos voyeurs; a fúria de Mbappé em direção ao gol, um guerreiro elegante, que não se esquiva nunca ao olhar do inimigo, movido por uma confiança prima-irmã da soberba; a juventude viva e alegre de Vinícius Júnior, um menino negro, que saiu da favela para espalhar pelo mundo um sorriso contagiante, que ele não conseguiria esconder, ainda que quisesse, porque lhe chega como uma força da Natureza. Coisas que só o futebol, em qualquer tempo, possibilita, principalmente em um país em que pobre rima com preto e preto rima com dor - ainda. 

Eles confirmam que o novo sempre vem, em meio à média universal, entretanto, cada vez mais exclusivo de alguns poucos artistas, que prescindem de espaço e de tempo. E, até por isso, não deixam que enxerguemos com nitidez a beleza daquilo que fazem no instante em que fazem, exigindo-nos sempre o replay, para confirmar que é real o que nos pareceu fantasia.

O futebol, para mim, virou um prazer indolor, eis a constatação. Mudou porque tudo muda. Nada é absolutamente estático – nem eu, nem você. Seguindo as leis da natureza, em transformação constante, vai criando novas espécies e nem sempre extinguindo aquelas que lhe deram origem. Nisso, convenhamos, o futebol foi mais egoísta, não deixando ao menos a sobrevivência aos não adaptados.

Tudo faz parte, compreendo, do progresso do esporte. Mas, mal comparando, imaginemos um concurso entre artistas plásticos, em que o vencedor seria aquele que terminasse mais rapidamente a sua tela. Ou poetas se enfrentando para entregar primeiro à mulher amada – mesmo que não seja uma mulher – o verso mais preciso e definitivo: seria um concurso de arte ou de destreza?

Ah, o futebol não é uma disputa de abstrações, subjetividades, me dirão. Só quem não foi menino, correndo pelas ruas de pés descalços, ferindo atrozmente a "cabeça" do dedão, em uma dor insuportável, mas não paralisante, seria capaz de fazer uma afirmação tão real quanto estúpida.

Sim, queridos e queridas que me toleram, confesso-lhes que prefiro ouvir, nessa toada de sessentão, cada compasso, único, de uma valsa de Jobim (“Parece que dizes/ Te amo, Maria”) a um rap bem urdido, com versos precisos e inteligentes, que até nos parecerão definitivos enquanto durem. Ou um samba-enredo dos tempos em que aprendíamos por puro prazer as músicas que embalavam as escolas de samba na avenida, num ritmo bem menos avexado do que o das atuais marchas, de que só ouvimos o repique da bateria ou o grito do intérprete principal (em respeito a Jamelão não chamo de “puxador” de escola de samba).

Ora direis: - Então, o tempo passava mais devagar.

E eu vos indagarei: - Sim, mas para que apressá-lo?