Só nós, um grupo de quatro ou cinco amigos, frequentávamos aquele barzinho na Avenida Rotary, aos sábados. A mesa solitária era atendida também por um solitário garçom, que se escondia por trás de uma pilastra para que não o tirássemos do sossego de que tanto gostava. De repente, chegava o Chico de Assis, sorriso aberto, boas histórias para contar, e seu incomparável talento de declamador. Eram os clássicos da poesia matuta, os melhores nacionais e locais, até o desfecho, quase sempre, com "Poema Negro", de José Régio. Tantas vezes o Chico interpretasse a peça, nós o aplaudíamos com o mesmo entusiasmo. Afinal, de que viveriam os atores se não dos aplausos?
Personagem dele próprio, o Chico foi construindo sua fama com o dom que carrega na alma desde os cueiros. Vê-lo num palco, ou numa mesa de bar, é um deleite. Se algum poeta, conhecendo-o, criava sua definitiva obra-prima, a quem entregá-la para que ganhasse o mundo?
Claro, ao Chico de Assis.
Assim o fez o gentil juiz aposentado e poeta Christiano Nunes, que nos deixou uma saudade boa de cultivar. Convencido por Sidney Wanderley a inscrever um dos seus sonetos num festival de poesia, o homem, já bem talhado no tempo, fez-se de novo adolescente e caprichou. Entregou a obra ao nosso ator, para que fosse apresentada na final realizada na Casa da Palavra. Chico fez o que bem sabe. Só que naquela noite, me confessou depois, ele estava com uma dentição novinha em folha, o que lhe atrapalhou a dicção.
Bem, mas não foi esse o problema sentido pelo poeta Christiano. O que ele não conseguiu ouvir na voz grave e bem postada do Chico foi... o seu poema. Nos primeiros versos, tudo bem. Só que depois veio o improviso do ator acostumado a tantos cacos nos palcos da vida. O atônito sessentão viveu a mais cruel frustração desde a sua já longínqua juventude. Balbuciava baixinho:
- E o meu poema, onde está o meu poema?
O Chico, olhar num horizonte só dele, seguia em frente, altivo e sobranceiro, no exercício do seu ofício tão precioso e raro.
Não havia sido assim, lá atrás, nos idos de 1987. Chico de Assis defendeu com absoluto sucesso uma obra do próprio Sidney, num festival de poesia patrocinado pela UFAL. O primeiríssimo lugar lhe rendeu um bom prêmio como melhor intérprete. De lambujem, arrastou também a premiação do autor - por procuração-, que estava viajando e chegaria no dia seguinte para acertar as contas com ele. O calendário dos homens, entretanto, retardou o encontro o quanto pôde. Vida que segue, tempos depois o artista se viu diante do poeta, sentou-se em sua mesa num bar da orla, bebeu, comeu e avisou:
- Não pense que eu esqueci o dinheiro do seu prêmio. Eu enfrentei um pequeno problema lá em casa, e, para acalmar a mulher, tive de comprar uma geladeira novinha. Precisei da grana e gastei. Mas some o valor do prêmio e a minha parte dessa conta, que qualquer dia eu lhe pago de uma só vez.
É verdade, a dívida estaria ainda em aberto, não tivesse o Sidney a contabilizado na sessão de "perdas e danos". A extraordinária memória do Chico, que funcionava maravilhosamente para decorar os textos de longas peças teatrais, às vezes falhava, está claro.
Aconteceu, por exemplo, com o acordo feito entre ele e o Fernando Sérgio Lira, então prefeito de Maragogi (primeiro mandato), também conhecido pelos lapsos de memória e pela criativa construção de enredos. O presidente da Fundação Cultural Cidade de Maceió e o prefeito-poeta-médico decidiram promover um intercâmbio de grupos folclóricos das duas cidades. É claro, tinha tudo para dar errado.
E deu.
Como tivesse grande dificuldade de fechar os últimos detalhes com Chico de Assis - sempre "viajando" -, Fernando Sérgio resolveu vir direto para a capital, sem avisar ao nosso personagem. Já na pracinha em frente à Fundação, ligou para o celular do Chico:
- Estou chegando a Maceió para começarmos a tocar o nosso negócio.
- Ih, rapaz, hoje não vai dar. Eu vim ao Rio de Janeiro acertar um convênio com a Funarte. Mas na próxima semana, eu estou de volta.
- E quem é esse careca de blusa azul que eu estou vendo aqui na porta da Fundação?
-Huum?! Serjão, meu irmãozinho, que saudade!
E os dois se abraçaram em viva e sincera alegria, como sói acontece quando duas almas gêmeas se encontram.
Ricardo Mota