Desmancho-me, ligeirinho, quando ouço do outro lado da telinha:

- Vovô! Onde tu tás neném?/ Eu vim te procurar...

Claro que estou falando do afamado João Vicente (o baião é de Luís Bandeira), que se ainda não desenvolveu os ardis dos espécimes adultos da nossa tão pouco cordata espécie – “a vida do homem consiste na milícia contra a malícia do homem”, Baltazar Gracián y Morales -, já sabe como deixar esse velho escrevinhador sem palavras, engasgado com os próprios silêncios.

Se deixar, ele prossegue: “Neném, neném, neném, o que aconteceu/ Com todos te querendo, tu vem ficar mais eu...” (Pinto do acordeon). 

Ah, gente, como eu gosto dessas nordestinices que meu proprietário mais velho já teima em usar! Por exemplo: “gota serena” - assim “como bexiga lixa da Arapiraca” - já faz parte do seu repertório de expressões regionais nossas, que ele trata de espalhar em São Paulo, na escola e por onde passa. É mais ou menos o seguinte: ao tempo que enriquece o seu vocabulário, já vai se fazendo doutor no dialeto desse lado ensolarado do país.

Imagino que ele haverá de enfrentar algum preconceito, mais adiante, e até iniciar uma nova peleja entre Nordestinices x Cretinices, com alguma personagem semelhante a Angela Landim, diretora do Flamengo e esposa do presidente do clube - o que para o caso não há de ter grande importância –, como se viu na semana que passou.

O fato é que a madame resolveu protestar contra o resultado das urnas do domingo passado, afirmando, em defesa do seu candidato derrotado no voto: “Ganhamos onde se produz, perdemos onde se passa férias”.

Há de se dizer: é impossível ser infeliz sozinho (a), parafraseando Vinicius de Moraes. Eis uma explicação plausível para a desalegria de Madame Landim, tão encharcada de preconceitos e ignorâncias.

Ela replicou, ressalte-se, a mesma visão de mundinho de uma advogada, Flávia Moraes, do interior de Minas Gerais, o estado/síntese do Brasil - cheio de nordestes, centro-oestes e sudestes em seu território rosiano (e de comidas maravilhosas, se me permitem os tolerantes leitores).

A primitiva xenofobia, que nasceu nos primórdios do homem das cavernas, é algo que infelizmente o Brasil ainda não superou e que se apresenta sempre que uma alma ferida do lado de baixo do nosso mapa resolve se pronunciar em momento de dor, só para confirmar que “o inferno são os outros”.

E há várias formas de esse preconceito – estúpido como todo preconceito - se expressar. Lembro-me que na eleição de 2014, entrevistei o então candidato a presidente Aécio Neves, mineiro com fama de playboy carioca. Indaguei se era verdadeira a notícia de que o Serra ia ser o seu vice.

Ele: “Essa informação já chegou por aqui?”

Eu: “Não sei se o senhor sabe, mas nós já temos televisão, rádio e até internet!”

Morreu o papo, claro.

Isso é ainda muito pouco, evidentemente, em comparação ao que muitos nordestinos têm de encarar, de estupidez e desconfiança, no cotidiano dos estados “onde se produz”. 

Se eu não encho a boca para dizer que sou nordestino, até porque não creio que as pessoas são boas ou más a depender do lugar em que nascem, entendo também que o Nordeste é, sim, mais solar que as outras regiões do país - e o Sol é a fonte de toda energia vital. 

A geografia me deu uma cultura rica demais para lamentá-la e não mergulhar nela. Quanto às nossas dores, não são diferentes daquelas de que os brasileiros em geral padecem. Quando, que fique claro, conseguimos interpretar os versos de Patativa do Assaré, em Nordestinos, sim; nordestinados, não:

Já sabemos muito bem/Onde nasce e de onde vem/ A raiz do grande mal/ Vem da situação crítica/ Desigualdade política/ Econômica e social/ Somente a fraternidade/ Nos traz a felicidade./ Precisamos dar as mãos.

Mas, reparando bem, Madame Landim e sua colega de infortúnios bem que podem justificar-se em seu rancor e desamor com a gente de cá. Afinal, não parece nada bom viver e trabalhar em uma terra que - para elas, ao menos - não serve para se passar férias. O bom da vida, eis a sua involuntária e oportuna revelação, está em outro lugar.

(Só que alguém precisa avisar à madame que quando ela viaja se leva junto.)