Crônica: As pernas longas da mentira

07/08/2022 07:30 - Ricardo Mota
Por redação
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Lembro-me com alegria, hoje, do meu amigo-da-vida toda Fredão, que nos deixou em 2018. A saudade tem desses caminhos: vai tentando apagar os rastros da dor para que a gente possa continuar vivendo, e não o contrário. É quando ela se empenha no truque de acentuar na nossa memória, pouco a pouco, apenas as boas recordações dos nossos mais queridos ausentes.

Como sujeito inteligente, Fredão zombava de si próprio – e da sua profissão. Professor universitário de estatística, sempre que surgia a oportunidade, repetia a frase clássica de Benjamin Disraeli, que foi primeiro-ministro britânico, no século XIX:

- Há três espécies de mentiras: mentiras, mentiras deslavadas e estatísticas.

(Uma boa provocação aos donos de empresas que fazem pesquisa eleitoral. Lembrando que, sim, existem institutos confiáveis no Brasil).

Mas vamos ao que interessa: a mentira é tão antiga quanto a espécie humana. E não adianta nem perguntar quem nasceu primeiro. O problema é onde ela, a democrática manifestação humana, atua e produz suas consequências. 

Na política, quase sempre, vale a máxima de Goebbels, revivida por quem a pratica criminosamente: “Uma mentira dita mil vezes torna-se verdade”. Eis uma verdade que todos conhecem, ainda que os do ramo não se cansem de replicá-la como lição de sabedoria.

Seguem dois exemplos trágicos de como a mentira pode ser (e foi) letal: a invasão do Vietnã, pelos Estados Unidos, teve como justificativa o ataque dos asiáticos a embarcações americanas, o que nunca aconteceu. Resultado: mais de 3 milhões de civis vietnamitas mortos e 58 mil americanos - a grande maioria, de militares.

Mas a mesma gente arrogante não aprendeu e nem se arrependeu: a invasão do Iraque, 30 anos depois, e de novo pelo EUA, se baseou na existência de “armas químicas”, fictícias, de Saddam Hussein - os que mandam mentem (e vice-versa), e os tolos matam.

Nos últimos anos, a mentira conquistou denominação universal e passou a ser praticada, cada vez mais, por profissionais do ramo. Finalmente, ela ganhou pernas compridas nas redes sociais. Quem a pratica sabe o impacto que provoca do outro lado da tela e chega até a imaginar a manifestação clássica dos que a recebem e replicam: Uh! Uh!

Cada vez mais eu entendo que a tal da fake news tem relação direta, mesmo, é com a meia-verdade, na preciosa definição de Millôr Fernandes: “O perigo de uma meia-verdade é você dizer exatamente a metade que é mentira.” 

Exemplo: “É preciso atingir a imunidade de rebanho” - a meia-verdade que muito foi dita e repetida recentemente pela turma do negacionismo. E aí vinha a mentira inteira: isso se consegue deixando a população adoecer “livremente” e esperando que os mortos venham salvar os ainda vivos. 

A imunidade de rebanho já foi assim um dia, até que o homem descobriu a vacina, no século XVIII, e ela passou a ser uma conquista da Ciência – e não da indesejada dos homens. Milhões de vida foram protegidas e preservadas desde então (o que os negacionistas, até eles, sabiam, mas rejeitavam em nome de uma crença).

“A mentira é um vício maldito”, atacou Michel de Montaigne em um dos seus maravilhosos Ensaios - Dos mentirosos. E ele alerta para a dificuldade de lidarmos com a dita-cuja: 

- Se, como a verdade, a mentira tivesse apenas um rosto, estaríamos em melhores termos, pois tomaríamos como verdade o oposto do que dissesse o mentiroso. Mas o reverso da verdade tem cem mil formas e um campo indefinido. 

Eu?

Até minto, mas espero fazê-lo cada vez menos. Por meu gosto, no entanto, tiraria a coroa de rainha dada à estatística por Disraeli.  Ela ficaria com as vidas que se fazem grandiosas mentiras (e não só nas redes sociais), alardeadas por seus donos como se verdades fossem.

Seguramente você conhece algumas pessoas assim - e não as admira.
 

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