Éramos um bando de garotos recém-saídos da adolescência, em 1976, quando iniciamos o curso de Medicina da UFAL, que eu abandonei quatro depois, “para o bem da humanidade”, costumo repetir.
Mas lembro-me bem que, já nos primeiros dias, reuníamo-nos em torno de um banco de cimento que ficava embaixo de uma árvore, no velho CCBI – Praça da Faculdade -, nos divertindo e planejando “grandes eventos”. Um deles: soltar os cachorros, literalmente, que eram usados nos laboratórios de Biologia, todos nos parecendo raquíticos e anêmicos. Havia ainda um carneiro muito magro e abatido, que resolveu também sumir no oco do mundo (com a nossa ajuda, claro).
Estávamos convencidos de que o ato libertário era motivado por pura compaixão, mas concluo hoje que o espírito de molecagem foi decisivo para que déssemos asas a quem tinha apenas patas (quatro cada um - como boa parte dos humanos).
Mas essa é uma questão, o direito dos animais, que corta o tempo e avança em boa discussão filosófica e, principalmente, biológica. Baseada sempre no fato de que nós, os humanos arrogantes, nos arvoramos a provocar dor e morte a outras espécies, em nosso proveito, e tantas vezes por puro prazer ou ignorância.
Estima-se que 50 milhões de animais são usados, a cada ano, em pesquisas científicas e testes. Neles são inoculados drogas em geral, vírus, bactérias e outros agentes mortais. Uma questão importante que se coloca nesse debate é a capacidade dos outros animais não humanos de sentir dor e outras emoções e sentimentos mais complexos (seguindo o padrão antropocêntrico), para que passem pela porta de entrada da “comunidade moral”.
Se não restam dúvidas quanto aos mamíferos – os cães e gatos que moram nas nossas casas, por exemplo –, hoje se sabe que até os peixes sentem dor, mostram os experimentos realizados por biólogos/etólogos. E vão, os bichos das águas, até onde não imaginamos que eles possam chegar: há estudos que mostram que os peixes podem morrer de estresse ou sofrer de depressão!
Um desses experimentos (sobre hormônios) fez uso contínuo de etanol num tanque de peixes, o que foi suprimido dias depois. Após essa última fase, vários espécimes demonstraram puro desinteresse pelos alimentos e pela vida, sintomas típicos da abstinência.
Voltando à questão central: que direito temos de provocar dor ou sofrimento a outras espécies, mesmo as que nos vão fornecer as 250 milhões de toneladas de carne que consumimos por ano? É possível dar tratamento mais digno aos animais de cativeiro? Estas não são perguntas bobas ou banais, se entendermos que a tortura é uma prática generalizada nas granjas e grande criadouros animais - o que nossa empatia relativa não nos permite enxergar. (Você fica indignado com a tortura? Eu também).
Aliás, os grandes primatas, nossos primos-irmãos, nos dão belas lições de empatia na Natureza e nas “ilhas” em que são mantidos para estudo. Bebês gorilas, cujas mães morrem por algum motivo, são criados com todo amor por outras fêmeas, que chegam a amamentá-los e protegê-los de outros animais e predadores. Em algumas colônias, indivíduos mais jovens levam água e comida para os animais mais velhos, com sérios problemas de mobilidade, chegando a colocá-los na boca dos anciãos (anciãs) em tempos de despedida.
Ora direis: os humanos também fazem assim! É verdade, o que vale para muitos de nós. Eis uma razão a mais para que os tratemos com todo o respeito que qualquer vida merece (Jared Diamond chega a afirmar que quem mata um grande primata – chimpanzé, bonobo, gorila e orangotango – deve ser julgado por assassinato).
Estamos falando de espécies com as quais compartilhamos – caso de chimpanzés e bonobos – mais de 98% do nosso DNA. Não é pouco, mesmo. E graças a eles, é bom lembrar, sabemos muito mais sobre nós, “pobres humanos”. Seria um gesto de gratidão, até, lutar com unhas e dentes pela sua preservação (e não apenas deles).
E de gratidão, nossos parentes tão próximos dão exemplos impactantes. Em seu livro – imperdível para quem gosta do tema – O último abraço da matriarca, o biólogo holandês Frans de Wall narra o caso da fêmea de chimpanzé Wounda, que foi resgatada de caçadores ilegais, no Congo. Ela estava à beira da morte, com ferimentos graves e generalizados, mas recebeu os cuidados e carinhos de Jane Goodall, aclamada primatóloga inglesa. Tempos depois, por óbvio, Wounda foi solta na natureza, para que pudesse reviver o convívio com sua espécie e hábitat.
Ao se ver fora das grades, a fêmea de chimpanzé fez o que qualquer pessoa faria: correu apressadamente para a liberdade. Mas eis que resolveu surpreender a pequena plateia humana: parou no meio do caminho, retornou até o grupo e deu um longo abraço em Jane Goodall.
Uau, isso é bonito demais, gente!
Talvez seja o momento, para todos nós, de lembramos Mark Twain, o ótimo e valente escritor americano (se achar por aí Cartas da Terra, não titubeie – leve-o para sua estante). Disse o provocador:
- Se você pegar um cachorro faminto e torná-lo próspero, ele não o morderá. Esta é a principal diferença entre um cão e um homem.
Se alguém aí, assim como eu, já recebeu dolorosas dentadas – metafóricas – de humanos ingratos, há de concluir que os cães do CCBI não atacariam aqueles moleques de 1976.

Ricardo Mota