Mais do que os instrumentistas, os luthiers são os meus artistas favoritos no ótimo O som e o silêncio, que o Canal Curta! (televisão para adultos) apresenta semanalmente. O virtuose percussionista Marcos Suzano nos conduz por oficinas simples, até nada convidativas, de onde não se imagina que sairão instrumentos sofisticados, de desenhos burilados, a que nem sempre prestamos atenção. Resumo da ópera: antes de tocar a alma, a música se faz nas mãos de homens e mulheres.
Kátia, a irmã mais velha mais jovem que alguém já teve, também possui uma habilidade inspirada com as mãos. As peças que ela produz - em papel, tecido, cola, arames e outros sutis complementos - revelam muito do que a artista/artesã traz escondido. Está ali a delicadeza que nem todos que convivem com ela têm a oportunidade de conhecer e se encantar. Sua timidez, que pena!, não permite a alguns descobrir seu “segredo”.
Morro de inveja, digo e confesso, de quem faz brotar a beleza das próprias mãos: pintores, escultores, artesãos e, admiração mais recente, muralistas, que tratam de dar alma a cidades mortas, vazias de paixão e afetos.
Esse talento, eu até imaginei que pudesse ter, ainda na minha infância, quando fabricava alguns brinquedos, gaiolas, petecas e outras geringonças. Doce recordação: não esqueço o orgulho, e até a emoção, de trocar um patinete que eu havia feito por um casal de coelhos. Quer dizer: eu achava que era um casal - só que não. Mas valeu para alimentar a minha autoestima, por alguns dias, ter produzido com suor, talvez mais do que o necessário a alguém com maior habilidade, algo que virou objeto do desejo de outro garoto como eu.
O tempo se encarregou, este é o seu lado mais cruel, de me mostrar que eu me deparava apenas, naquela quadra da existência de menino embriagado de sonhos, com mais uma “ilusão pelo desejo”, na ótima definição de Freud. Desfez-se a fantasia (é verdade: outras surgiram).
Restaram-me, no avançar da jornada, somente as palavras, que não parecem gostar tanto de mim quanto eu delas. Escapam-me pelos dedos, quando as busco, beirando o desespero, numa fuga prenunciada pelos olhos, e se vão como que se desmanchando em escárnio, letra por letra, por terem enganado mais um tolo.
Voltando à Katita, como eu a chamo, aprendi muito vendo as suas obras minimalistas ou, simplesmente, ouvindo-a falar desse fazer cotidiário. Não adquiri a sua vocação – isso não se ensina -, mas hoje entendo que as mãos em trabalho, de pequenos gestos e larga visão, seguem cegas exatamente porque o que as guia não é revelado pelos olhos – pressente-se.
Sua serenidade e concentração - um único alvo a alcançar em meio à algaravia dos dias - naquilo que vai nascendo dos dedos miúdos são o sinal mais claro de que ali opera uma alma, que ao fim da jornada há de se sentir prenhe de cansaço, daquela fadiga apaziguadora, que faz o corpo esmorecer no leito tão desejado em dias bem-resolvidos. Claro, pelos que sabem que a pequena felicidade, a única possível, quase completude, pode estar à mão.
O vazio existencial, este que fique com os que não conseguem enxergar nos objetos minuciosamente entalhados que a artista/artesã produz o quanto eles estão impregnados de vida. E se alguns pequeninos defeitos até forem notados – e há quem busque isso com sofreguidão -, que se entenda que eles são o toque mais humano da sua criação.
Há muito a se aprender com a sua doce faina. Por exemplo: a repetição, tantas vezes, das figuras que lhe brotam das mãos é uma precisa metáfora sobre indivíduos e sua rotina: assim como os dias que parecem iguais, em cada uma delas, hecha a mano, haverá insistentemente uma novidade - para quem souber desvendá-la.
Seria, talvez, a sabedoria de Heráclito, que se afastou dos homens para entendê-los, a nos repetir: - O rio passa de novo, mas sempre como se fosse a primeira vez.

Ricardo Mota