A minha dúvida é: tolo sou eu por pensar que era só um chiste de internet ou tolo é quem inventou essa absurda história de cancelar os grandes autores russos, por conta da guerra do Putin?

Se você respondeu que as duas hipóteses estão corretas, eu aceito de bom grado e prometo que na próxima vou me esforçar para não criar falsas expectativas sobre nossos semelhantes por esses tempos.

Mas, eis o óbvio, só quem admitiria eliminar das nossas prateleiras e estantes as obras de Dostoiévski, Tolstói e Gogol – entre outros - são aqueles que nunca os leram, e ainda que o tivessem tentado, não compreenderam e desistiram no meio do caminho (pensar dói). Eliminá-los dos nossos olhos, então, seria um grande e monumental favor à ignorância ocidental.

Este me parece um bom mote para falar de censura, tão useira e vezeira nas ditaduras, sempre comandadas por tipos que odeiam a arte e o conhecimento, cultivando a cegueira do pensamento, reduzindo homens e mulheres a meros repassadores de crenças que desprezam a razão. 

Recentemente, li Mordaça (João Pimentel e Zé Mcgill), um livro que faz surpreendentes revelações sobre a censura “nacional” e compõe um bom retrato do que era a turma da tesoura da ignorância durante a ditadura militar no Brasil. Os depoimentos dos artistas mais censurados pós-AI5 – compositores, principalmente – nos trazem alguns dos personagens que decidiam, do alto do seu autoritarismo e de sua falta de saber, o que nós podíamos ver, ouvir e ler. Um horror!

“As pessoas mais inteligentes não entram na atividade da censura porque é uma atividade bastante ridícula”, resume Caetano Veloso. Não por acaso, quando foi criado, em 1972, o Conselho Superior de Censura (antes era “serviço”), o genial Millôr se saiu com essa: “Se é censura, não pode ser superior”.

Você duvida?

O advogado João Carlos Muller é um dos entrevistados pelos autores. Representante de algumas gravadoras junto aos censores em fúria, ele conta o seu encontro com um coronel da censura no Rio de Janeiro. O fardado de poucas luzes indagou-lhe se ele já havia ouvido falar em “subliminar”:

A resposta foi óbvia: - Sim.

(Segue o enredo)

- Você pode me apresentar uma letra que diga: “Hoje eu quero uma rosa ..." Eu liberaria...

- Claro, coronel.

- Agora, e se o sujeito na gravação cantar a mesma letra assim: “Hoche eu quero uma rosa...”

- ????????

(Aos gritos)

- Che Guevara, meu amigo! É subliminar! HoChe... Che Guevara...

Não duvide: essa turma censurou Casa Forte, de Edu Lobo, por supor que ela trazia mensagens cifradas. A imaginação dos tesouristas ensandecidos havia chegado ao inimaginável: esta era uma obra instrumental, sem letra!

Alguém aí do outro lado pode até me provocar: - Mas você se cancelou das redes sociais, um tipo de autocensura, não é, não?

Admito que sim. Mas o fiz preventivamente, em nome da minha saúde mental e em benefício de outros redistas, que haveriam de ter apenas mais um sôfrego idiota a disparar torpedos contra futuros desafetos. Sim, porque eu sou um sujeito comum demais, capaz de reações estúpidas tão corriqueiras no cotidiano de todos – igual a qualquer um, portanto. Disso sabendo, melhor evitar. 

Não tem jeito: se um escroque do outro lado o ataca, inevitavelmente você vai buscar, no miolo do seu sentimento primitivo, o troco adequado, na única linguagem que o tal entende – é o território dele que estamos invadindo, alguns degraus abaixo de onde você gostaria de estar.

Gente, nas redes sociais, todo mundo sofre de ejaculação precoce (isso é uma metáfora). Quem está ali, vivendo e sofrendo as emoções do embate e por elas tomado, há de se sentir disposto a superar os limites admitidos até pela ousadia da estupidez. Espero já ter superado essa fase. Espero, repito.

Voltando à censura velha de guerra, lembro-me dos anos de adolescência, em que era obrigado com meus parceiros de traquinagens e curiosidades a mergulhar secretamente, por exemplo, nos Subterrâneos da Liberdade - em três volumes - de Jorge Amado. Éramos proibidos de ler por figuras que não liam (talvez hoje lessem tuítes e até os escrevessem).

Só me resta encerrar estas nem tão breves linhas com a ótima sentença do poeta e físico alemão Georg Christoph Lichtenberg (século 18): 

- Um livro que, antes de todos os outros no mundo, deveria ser proibido é um catálogo de livros proibidos.

(Um dos textos mais primorosos que eu li em toda a minha longeva existência tem Dostoiévski como autor. Trata-se de O grande inquisidor, em Os irmãos Karamazov. É ler e se encher de gratidão ao velho autor russo.)