Nada há de mais libertário do que reconhecer, antes que o mundo grite e sentencie, aquilo que você é. Estou falando dos defeitos, já que as qualidades você haverá de imaginar que sabe antes de qualquer um.
Claro, esse caminho pode não ser recomendável para quem tem baixa autoestima ou é movido pelo nada nobre sentimento da inveja (“o mal secreto”), mas pode propiciar um voo que lhe pareceria impossível, até com o vento batendo no rosto. A magnífica sensação de liberdade.
Não cabe, aqui, por óbvio, a civilizada modéstia (“a modéstia é a vaidade atrás da porta”, Mário Quintana). As vantagens, porém, são maiores do que o contrário ao se fazer um balanço de virtudes e vícios, estes sempre mais numerosos. Ajuda a escapar do ridículo, sempre à espreita, correr apenas os riscos que valem a pena, fugir do que lhe é demasiado, desfazer-se das relações que só lhe puxa para o porão das misérias humanas.
Cabotinismo - ou talvez simplesmente estupidez - não é reconhecer suas qualidades, mas sim ignorar os seus defeitos ou negá-los, quando identificados. E todos os temos em tamanha quantidade que o mais difícil numa trajetória única, sem repetição, assim me parece, é nos livrarmos deles, um a um.
“A perfeição não é alcançada quando não há mais nada a ser incluído. A perfeição é alcançada quando não há mais nada a ser retirado”, afirmou Antoine de Saint-Exupéry.
É um belo pensamento sobre algo que será sempre inalcançável a todos os humanos, em qualquer tempo ou lugar. Entendê-lo, no entanto, pode nos empurrar para a superação dos nossos sentimentos mais primitivos, um passo adiante do grande primata amedrontado e furioso, que busca superar os predadores sendo o mais terrível deles. Ir além do homem primordial, que os genes carregam de geração em geração, será sempre um avanço possível, mesmo que não o suficiente.
Confesso que já tive mais qualidades, na minha imaginação, do que tenho hoje. Só que passei a valorizar de fato aquilo que identifico em mim de positivo, que me viabiliza no mundo, do ponto de vista social e daquilo que os humanos, ainda que tão caóticos, souberam construir.
Sei, por exemplo, que não sou especialista em nada, mas trago uma curiosidade que eu creio rara e que me empurra adiante - sem projetar, no entanto, que chegarei ao menos ao fundo de mim mesmo (seria o fundo do poço?).
Por analogia, aprendo bastante com a Teoria da Evolução, entendendo que as mudanças na nossa personalidade acontecem no acumulado de pequenas transformações, mutações, acréscimos e subtrações. E elas continuam ocorrendo até o último suspiro, “que a vida não para” e opera na alma, com cortes sutis e precisos.
Jean-Jacques Rousseau está entre os filósofos mais ensinados nas escolas, principalmente por seu Do contrato social (1762), uma obra clássica, que sobreviveu aos tempos. Mas eis que o pensador suíço não escondia seu despeito/inveja do francesinho Michel de Montaigne, a quem incluía entre "os dissimuladores que pretendem enganar dizendo a verdade. Ele se apresenta com defeitos, mas só se atribui defeitos adoráveis”.
Os dois séculos que separam sua obra tão replicada dos maravilhosos Ensaios não foram suficientes para que a lição de genuína humildade do filósofo francês fosse absorvida pelo rival.
O que Rousseau disse de si próprio?
Eis: “Eu conheço os homens. Não sou feito como nenhum que até hoje eu tenha conhecido; arrisco-me a crer que não fui feito como qualquer outro que exista (...). Quanto a saber se a Natureza acertou ou errou ao quebrar o molde em que fui feito, é algo que ninguém poderá avaliar antes de me ler”.
O contraponto de Montaigne, cunhado bem antes do mais que perfeito Rousseau, é, para mim, o maior ensinamento que consegui colher em toda a minha já longa – 64 anos – existência:
- Eu sou um homem comum.
Então, somos pelo menos dois. Eu, sem as qualidades dele, saudavelmente invejáveis.