Logo que eu me casei, em junho de 1979, fui morar no hoje arruinado Jardim Acácia, onde passei mais de dois anos em três apartamentos diferentes.
Só dispúnhamos, eu e Tania, dois estudantes, de poucos móveis, nenhum na sala de visita. Um tapete persa (?), que ganhamos de presente de casamento, forrava o chão, ladeado por duas esteiras cobertas por enormes almofadas. Era este todo o conforto que podíamos oferecer aos visitantes, amigos e parentes, que frequentavam a nossa casa, para conversar, tocar violão e beber alguma coisa (barata, pois).
Nessa época, líamos muito sobre política, tema de tantas conversas apaixonadas, com as certezas absolutas que só a juventude e as religiões oferecem aos humanos, demasiados humanos. Divergíamos na periferia e convergíamos ao centro, porque a nossa identidade era clara e única: todos contra a ditadura.
Os debates se estendiam com frequência até os primeiros raios do sol, com o tom subindo à medida que avançavam as horas mortas. E, cá pra nós, nem sempre com momentos prazerosos - alguns, sim, de alvoroço e incômodo, ainda que depois tenham virado motivo de muita risada.
Lembro-me de uma noite em que eu e meu querido amigo Fred “derrubávamos” uma garrafa de rum (Montilla), quando apareceu uma catita, em direção à cozinha, cuja entrada estava no nosso raio de visão, a partir sala. O apartamento era térreo e o bichinho entrou por baixo da porta. Já era de madrugada, e nós, com algumas doses absorvidas, partimos resolutos para dar ao pequeno roedor o que ele bem merecia ao nos atrapalhar em pleno voo das palavras.
É dispensável dizer que o insignificante animal nos derrotou, vergonhosamente, qual o Ronaldinho Gaúcho em noite inspirada, a driblar seus adversários, humilhando-os (nos), com sua destreza de bailarino. Tudo bem que chamar um rato de bailarino é um exagero; menos do que isso, no entanto, seria expor nossa humilhação/vergonha (o Fred desabou de um banquinho onde estava em pé, segurando uma inútil vassoura) ao que de fato ela foi.
Voltemos ao apartamento.
Nas paredes quase nuas da morada popular – bem maior do que os que são construídos atualmente -, destacavam-se alguns pôsteres. O de Che Guevara, indispensável: “Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás” (frase que ele nunca teria dito); outro de Chaplin, com o discurso final de O grande ditador; e finalmente, um de autor desconhecido para mim, então, com os versos que não imaginei que se tornariam tão necessários, nos dias de hoje.
Eis:
Quando os nazistas vieram buscar os comunistas, eu fiquei em silêncio; eu não era comunista.
Quando eles prenderam os sociais-democratas, eu fiquei em silêncio; eu não era um social-democrata.
Quando eles vieram buscar os sindicalistas, eu não disse nada; eu não era um sindicalista.
Quando eles buscaram os judeus, eu fiquei em silêncio; eu não era um judeu.
Quando eles me vieram buscar, já não havia ninguém que pudesse protestar.
(Há outras versões, todas igualmente boas e apropriadas.)
Seu autor, me ensina agora o Doutor Google, é Martin Niemöller, um bispo protestante alemão, que carregou com ele a culpa de ter sido um entusiasta de Hitler nos seus primeiros dias. Embora tenha se tornado um inimigo público e reconhecido do nazismo, nunca esqueceu e/ou conseguiu perdoar a sua estúpida ilusão. O que os seus versos (na verdade, uma pregação no púlpito) denunciam.
Martin Niemöller sabia também que o genocida era então o mais alemão de todos os alemães, naquele momento histórico, o que ele escancarou em Of Guilt and Hope (Da Culpa e da Esperança), livro publicado em 1946. Em seu país, eis uma dolorosa e inesquecível verdade que ele apontou, viviam miríades de hitlers (também não creio nessa história de "loucos" hipnotizando bobinhos).
Ao ver o noticiário nacional, por esses dias, com tantos idiotas e ignorantes a defender a liberdade para a propaganda nazista, o aval para a pregação daqueles que negam o direito à vida para o (a) diferente - na cor, na religião, no credo político, no gênero -, me dou conta de que o quase esquecido pôster do apartamento que virou pó no Jardim Acácia continua gritando, em alerta.
Talvez seja esta a hora de pregar na parede nossa consciência, de novo e definitivamente, os versos de Niemöller.

Ricardo Mota