Se as comunidades virtuais migrassem para o mundo real, as sociedades “modernas”, a brasileira inclusive, teriam alcançado o mais alto padrão da virtude humana, a expressão perfeita dos nossos avanços civilizatórios.
Claro que não estou me referindo aos grupos que divulgam o discurso de ódio, um mal em si, mas à celeridade e à convicção com que se faz julgamentos ou se emite opinião sobre tudo e qualquer coisa, com um sabor amargo na ponta da língua, o dedo sempre a indicar o pecado alheio - dos outros, os que são o inferno.
As redes sociais, perdoem repetir o óbvio, são um dos subprodutos da internet – a borra, na verdade –, que nós resolvemos transformar em território da virtude, exercitando a fantasia humana de travestir o lobo em cordeiro. São o palco perfeito para os idiotas representarem o papel das suas vidas.
Bravo!
Nelas transitam (também) assassinos que defendem os direitos humanos; misóginos que fazem discursos feministas; desocupados que ressaltam a força do trabalho; racistas que pregam com vigor a igualdade das cores humanas. Eles nos servem, a cada dia, uma salada de virtudes, só que com o gosto azedo da hipocrisia.
São estes personagens os mais duros e impiedosos magistrados, os inquisidores do novo milênio, produzindo um enredo que os ajuda a dormir em paz ‒ aquilo que não encontram com tanta facilidade os que se importam, de verdade, com os próximos e com os distantes. Aqueles que sofrem com estes e por estes.
Vivemos a era do ressentimento, eis o que está posto. Não é a primeira na história humana, mas ela é única na sua capacidade de espalhar o mal como se o bem fosse. Nela investem indivíduos que se acham desprezados pela sociedade, que lhe cobram o reconhecimento que nunca chega, e que, de repente, apareceram ditando as regras do bem-viver e do bem-saber. Em resumo: os ressentidos.
Expressam a fúria acumulada, as frustrações, o inconformismo por ser alguém-quase-ninguém, com pequenas doses diárias e digitais de vingança, o "veneno da madrugada" espalhado a qualquer hora do dia. Na ponta do punhal virtual, todos os culpados pelo fracasso do anjo vingador pagarão pela incúria de não ter enxergado o mais belo e sábio ser entre os que vagam sobre a pele do planeta.
Repetindo o que é corriqueiro no comportamento humano, aos que são do seu endogrupo, tudo será perdoável ou justificável; aos que formam nos exogrupos, nem sempre declaradamente rivais, as mais duras penas do Código das Virtudes haverão de ser aplicadas sem piedade, sem dosimetria, céleres e quase divinas.
É impressionante a velocidade com que a justiça virtual resolve os seus casos, mesmo os mais complexos. A sentença está sempre pronta, mesmo porque não há inocentes entre os que são levados a sentar no banco dos réus do Tribunal do Feicibuqui (como o chama o Tom Zé).
Quando descobrirmos, se é que um dia isso acontecerá, que carregamos em cada um de nós “uma humanidade individual” (João Passarinheiro, personagem de Mia Couto no ótimo Cada homem é uma raça), seremos mais cautelosos e amenos nos nossos julgamentos das coisas banais e gerais do cotidiano.
Melhor do que isso, poderemos tentar evitar que nos transformemos naquilo que vemos tão facilmente nos que não são da nossa tribo. Está tudo guardado em nós - liberar a fera passará a ser, então, apenas uma opção entre outras possíveis e mais desejáveis.
Não por acaso, a internet, um instrumento que representa uma das mais importantes conquistas humanas, a comunicação potencialmente benigna e instantânea entre pessoas e povos, virou o abrigo preferido dos covardes e dos infelizes.
Parafraseando Frei Betto, ela não mudou as pessoas, apenas revelou-as nos seus sentimentos mais primitivos.
