Imagino que tenha sido um Chico Buarque entediado com os mortais combates nas redes sociais que afirmou sua disposição de não mais cantar, em seus shows, Com açúcar, com afeto ‒ uma canção de 1967.
Foi num documentário sobre Nara Leão, e fica claro que havia embutida na pergunta uma cobrança em torno desta sua criação, por parte de grupos feministas. Respeito a decisão do nosso genial compositor, mas acho que essa sentença de silêncio e morte em nada enriquece o bom debate sobre o machismo brasileiro.
Antes de mais nada, Com açúcar, com afeto é da fase inicial do Chico, um compositor que nos trouxe um refinado lirismo, com a inspiração de um cronista raro. Eis o ponto de partida: a música é uma crônica, uma narrativa sobre a vida real. Entendê-la como a exaltação do machismo, a vitória do malandro sedutor, é tocar apenas na pele da canção – a literalidade pobre, que não faz jus à riqueza poética do Chico.
Imagino que a partir de uma resposta diferente daquela que ele deu, Chico correria o risco de ser cancelado, demolido, esquartejado em grupos sociais/intelectuais de diversos matizes, que se unem em torno do grito tribal unificado.
Mesmo o Chico, exaltado por ser o poeta das vozes femininas, não seria poupado do tribunal do Facebook, célere e impiedoso - ele só conquistou a autorização para ter uma única voz feminina, nada mais do que isso. Mulheres de Atenas? Nem ouse. Geni? Tampouco. Ele pode ser um grande criador, mas não tem lugar de fala na temática abordada, haveriam de dizer se ele não tivesse entendido o recado.
Fato é que a chamada política identitária, tantas vezes, fragmenta demais as boas causas, rejeitando a intersecção onde esta é, mais do possível, necessária. Teima em investir na divisão onde a soma pode, sim, ser factível, fazendo-nos avançar em etapas, mas sempre avançar.
Por esses tempos, tudo parece ser mote para conflitos irracionais e artificiais. A multidão virtual se forma muito mais celeremente, por óbvio, mas segue a mesma regra central das multidões físicas – a desindividuação. Quem pensa é o indivíduo, não a massa, o coletivo sem rosto, impiedoso e bruto, que amalgama os absolutamente iguais, na composição de um monólito duro e surdo.
Foi tratando desse território minado, da política identitária, que nomes como Noam Chomsky, Margaret Atwood e Mark Lilla produziram um documento de grande repercussão política nos EUA, defendendo que a esquerda por lá “buscasse a unidade diante da especificidade das minorias”. Foram massacrados, mas não calados.
As desigualdades, assim creio, não devem ser combatidas e superadas apenas pelos (as) que são vítimas delas – e quase todos somos vítimas de alguma. Sem o apoio de quem concorda com a mudança cultural - independentemente de cor, credo e cruz -, a batalha se torna ainda mais árdua e desnecessariamente duradoura.
É verdade que para alguns, os que gostam mais da luta do que da causa, a permanência do mal não é a ausência do bem. Trato aqui daqueles e daquelas que acham que apenas os absolutamente iguais podem formar do mesmo lado, ignorando e/ou rejeitando o Paradoxo da Tolerância, de Karl Popper. O nosso sentimento não há de ser o ressentimento, elementar, primitivo, a excluir, sem açúcar e sem afeto, os diferentes não antagônicos, até quando tantos entre estes se associam com sincera honestidade aos humilhados e ofendidos.
Sinto dizer aos que negam a existência de um avanço civilizatório que ele existe, fruto da briga de homens e mulheres que não se conformaram com o status quo. É uma condição tão verdadeira quanto a permanência, lamentável, de relações de casais como a que Chico tão refinadamente narrou na sua canção.
Mais Chico, menos obscurantismo e cegueira.
Em tempo
No final da semana que passou, completaram-se quatro anos da morte do meu amigo Fred, uma presença inarredável na minha vida. Ele era o cara mais apaixonado pelo primeiro Chico – de Pedro Pedreiro, Apesar de você, Até pensei, Rita, Carolina, Sem açúcar... – que eu conheci. Fiquei imaginando qual seria sua reação ao debate de agora. Suspeito que ele balançaria a cabeça, sem muita paciência, e diria:
‒ Essa gente perdeu o juízo.