Mais que erros de governo, a reforma tributária conserva problemas antigos que se ampliam com a COVID-19, analisa a advogada Roseli Matias

28/07/2020 21:03 - Artigos
Por redação
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A tributação é um instrumento capaz de materializar igualdade social, por meio de políticas fiscais e tributárias justas. No entanto, o sistema tributário brasileiro é manipulado de forma desconectada da realidade socioeconômica. São muitos os problemas tributários, dentre eles: legislações complexas da União, de 26 Estados, do DF e de 5.570 Municípios - o que geram descompassos de entendimentos e discussões administrativas/judiciais; falta de transparência; tributos incidentes mais sobre o consumo de bens e serviços do que sobre a renda e o patrimônio, configurando uma das piores tributações do mundo, sobretudo quando a comparamos com a média dos países da OCDE.

 

No Brasil, as classes baixas e médias são proporcionalmente mais tributadas, sobretudo pelo consumo de bens e serviços. Por outro giro, as renda do capital e do patrimônio estão mais concentradas em uma pequena parte da população, nas “mãos” dos ricos e poderosos. Há, portanto, uma preocupação legítima com essa matemática injusta. A tributação é mais elevada sobre o consumo do que sobre a renda e o patrimônio, isso prejudica quem tem menos; não favorece a erradicação da pobreza e nem a redução das desigualdades sociais.

 

Esse cenário nebuloso alimenta o conhecido sistema regressivo, que, direta ou indiretamente, cobra mais tributos dos mais pobres. Diante destas distorções, o Congresso Nacional, há décadas, vem tentando aprovar uma reforma tributária ampla.  Nos últimos anos, os debates ganharam força e deram origens a algumas Propostas de Emendas a Constituição. A PEC n. 45/2019 pretende unificar cinco tributos (IPI, PIS, COFINS, ICMS e ISS). A PEC n. 110/2019 pretende unir nove tributos (IPI, IOF, PIS, PASEP, COFINS, CIDE-Combustível, Salário-Educação, ICMS e ISS). As duas buscam a substituição desses tributos pelo Imposto Sobre Bens e Serviços-IBS.

 

 

Essas propostas de emendas constitucionais visam alterar o sistema federativo, uma vez que mexem em tributos de competências de todos os entes federativos - União, Estados, DF e Municípios. Como sabido, a alteração da Constituição Federal exige um processo legislativo mais complexo e demorado, nos termos do seu art. 60. Diante da pandemia da COVID-19, e até de escândalos políticos na bancada federal, essas proposições apresentam-se sintomáticas, com pouco fôlego.

 

Portanto, precisarão de tempo para encontrar a cura. Pelas condições políticas e sanitárias desfavoráveis a um amplo debate fiscal e tributário, o momento atual pede medidas mais rápidas para reduzir e aliviar problemas considerados de mais fácil solução, ao menos do ponto de vista legal.

 

Movido por essas razões, na data de 21-07-2020, o governo federal enviou ao congresso uma “reforma tributária fatiada”, na forma do Projeto de Lei n. 3.887/2020, objetivando apenas a transformação de tributos federais (PIS-PASEP e COFINS) na Contribuição sobre Operações com Bens e Serviços (CBS), um tributo que segue características internacionais, conhecido lá fora como IVA.

A princípio, pode parecer muito bem vinda essa estratégia do governo federal, por diversos motivos propostos, dentre eles: o processo legislativo é mais simplificado; não haverá inclusão do ICMS e ISS; busca por um sistema mais transparente; redução de obrigações acessórias; simplificação, por considerar que não haverá tributação “por dentro”. Sim, o cálculo será “por fora”, ou seja, a alíquota é excluída da base de cálculo para apuração; expectativa de direito a crédito nas operações; diminuição de discussões sobre a essencialidade; e manutenção do simples nacional;

 

Cito ainda outros motivos: isenção do imposto na venda de imóveis residenciais para pessoas físicas; isenção para receitas decorrentes da prestação de serviços de transporte público coletivo; não incidência sobre as receitas recebidas do SUS por hospitais particulares; eficiência administrativa/fiscal (as plataformas de venda on-line – marketplaces – serão responsáveis pelo pagamento do imposto se o vendedor não emitir nota fiscal); manutenção do regime monofásico (incide apenas em uma cadeia da produção) para combustíveis; desoneração das exportações; e não incidência da CBS sobre condomínios, sindicatos, partidos políticos, entidades filantrópicas e conselhos profissionais.

 

De fato, esse projeto de lei apresenta aspectos positivos. No entanto, problemas de elevada ordem são visíveis e merecem atenta discussão. Afinal, quais são os impactos negativos que essa proposta fatiada de reforma tributária apresenta para a população, os Estados e Municípios? Vamos até eles:

 

Elevação da Alíquota

 

Hoje, as alíquotas do PIS-PASEP e COFINS somam 3,65% (no regime cumulativo) e 9,25% (no regime não cumulativo). Sendo aprovado o referido projeto de lei, essas contribuições serão unificadas pela CBS, com uma alíquota única para todos os setores, no valor de 12%, e regime não cumulativo.

 

Mas prevê uma exceção em prol das instituições financeiras, com alíquota de 5,8%.  Atualmente esse setor paga 4,65%. Mesmo a Federação Brasileira de Bancos – FEBRABAN apresentando dados que o Brasil é um dos poucos países que tributa a intermediação financeira e argumente as manutenções do regime cumulativo e da base de cálculo, a meu ver, este setor será o menos onerado de todos.

 

No final, o setor mais lesado será o setor de serviços, que, regra geral, é o maior empregador – por ser formado basicamente de mão de obra; portanto, ao contrário da indústria que possui diversas etapas de produção, tem pouquíssimas possibilidades de abatimentos.

 

Mas certa desconfiança surge: em um país onde os juros bancários são estratosféricos, o aumento da alíquota, por menor que seja, comparado a proposta para os outros setores, poderá aumentar o spread financeiro - diferença entre o custo do dinheiro para o banco e o quanto ele cobra de juros para o cliente.  Pela cultura bancária altamente lucrativa, independente do estado da economia, podemos sim esperar aumento nos serviços bancários, já não bastassem às mazelas socioeconômicas do sistema regressivo.

 

Manutenção do sistema regressivo

 

A tributação brasileira é manejada de forma altamente regressiva; incide com mais força sobre os mais pobres. Com uma alíquota alta de 12% para a CBS, o governo federal perde a oportunidade de respeitar o princípio da capacidade contributiva (art.145,§1º, da CF/1988), deixa escapar a chance de concretizar justiça fiscal. Não é justo que os ricos e milionários paguem menos tributos, sobretudo quando a pobreza e as desigualdades sociais são visíveis nos quatro cantos do país, resguardadas as peculiaridades regionais.

 

Gostaria de saber o porquê de não iniciar uma reforma tributária atualizando a tabela do Imposto de Renda? Por que não instituir o Imposto Sobre Grandes Fortunas (art. 153, VII, da CF/1988)? Por que não tributar lucros e dividendos?

 

Uso aqui desses porquês para exemplificar que existem alternativas mais justas para iniciar uma reforma tributária. Por sua vez, a equipe do governo federal vem propagando que a intenção não é aumentar a arrecadação e sim manter o patamar da carga tributária da União.

 

Federalismo Fiscal x Concentração de renda na União

 

O federalismo fiscal foi constitucionalmente mapeado como sendo capaz de ofertar autonomia financeira a União, aos Estados-membros, Distrito Federal e Municípios.

 

Para tanto, estabeleceu competências tributárias, através da distribuição e limitação de poderes para cada ente criar seus tributos; e criou um sistema de repartição vertical de receitas, de modo que, por força do texto constitucional, a União é obrigada a repartir determinados tributos com os Estados, o DF, e os Municípios; os Estados com seus respectivos Municípios. Cumpre lembrar que os Municípios só foram elevados à condição de entes federados com a Constituição de 1988 (art. 1º).

 

Eles, os entes municipais, embora não sejam obrigados a partilhar suas receitas com outros entes, são os mais pobres da federação, os que possuem menos dinheiro para efetivar políticas públicas, seja nas áreas de saúde, educação, assistência social, infraestrutura etc.

 

Portanto, estamos diante de dois problemas federativos que são muito caros a todos nós cidadãos: 1) A maior quantidade de tributos é de competência da União (II, IE, IPI, IOF, IRPF, IRPJ, ITR, PIS-PASEP, COFINS, CIDE, CSLL, FGTS, contribuições sociais e especiais, contribuição de melhoria, taxas, empréstimos compulsórios); 2) A União só é obrigada a repassar para os entes infranacionais uma parte da sua arrecadação com impostos, não com contribuições. Imposto é apenas uma espécie, dentre tantos outros tributos que existem. A CIDE Combustível é a única contribuição que a União tem a obrigação de dividir o produto de sua arrecadação (art. 159, III, c/c art. 177, §4º).

 

Por mais absurdo que pareça, a União não se conforma em possuir proporcionalmente mais competência para tributar do que os demais entes. Historicamente, ela sempre busca arrecadar mais e mais, porque ter mais dinheiro significa ter mais poder; significa a submissão dos Estados, DF e Municípios às decisões da União.

 

Essa disputa apresenta coerência com o comportamento tradicional dos presidentes, que insistem em aumentar a fatia da União no bolo tributário nacional, através da instituição de contribuições e não de impostos. Lembrem-se: A União tem que dividir impostos com os Estados, o DF e Municípios, já as contribuições não.

 

Sim, como explicado, o governo federal, por meio da proposta fatiada de reforma tributária, pretende substituir contribuições (PIS-PASEP e COFINS) que juntas somam uma alíquota menor, por uma só contribuição (CBS), com alíquota bem mais alta, no valor de 12%.

 

Não, ela não para por aí! Uma vez considerando que a CBS incidirá sobre operações com bens e serviços, sobre faturamento/consumo, não podemos esquecer-nos de questionar que a União abre mais caminho para invadir a base tributária dos Estados (ICMS sobre produtos) e dos Municípios (ISS sobre serviços específicos). Embora a questão seja controversa, partindo do pressuposto que a Constituição proíbe que um ente invada a base tributária de outro ente, entendo que essa invasão evidencia ofensa ao “pacto” federativo.

 

As condições atuais do projeto de reforma tributária apresentado pelo governo federal, no final das contas, parecem mais prejudiciais que benéficas. A pandemia da COVID-19 vem colocando o Brasil no caminho de uma das maiores crises econômicas de sua história. Falta espaço para mais injustiça fiscal.

 

A conjunção dos problemas aqui refletidos leva a conclusão que são necessárias revisões no texto do PL n. 3.887/2020, como: inclusão de emenda para redução da alíquota da CBS, para não ultrapassar o atual modelo do PIS-PASEP e da COFINS; que o prazo para pagamento seja compatível ou ampliado em relação ao então vigente; e atenção à base tributária dos demais entes.

 

A proposta foi apresentada há poucos dias e o caminho pede licença para modificações substanciais, como estas. Muitos fatores socioeconômicos e políticos poderão influenciar o resultado final da aprovação pelo congresso. Por isso, as discussões não podem ser negligenciadas. E qual a estratégia? Pressão popular, sob pena de pagarmos ainda mais por bens e serviços; mobilização dos governadores e prefeitos junto à bancada federal, por respeito ao federalismo; e lobby dos setores prejudicados.

 

Além de todas essas mobilizações em busca de sobrevivência, é importante que empresas, de modo individual, façam a revisão dos seus pagamentos de tributos. Isto pode resultar em redução ou recuperação de tributos pagos indevidamente ou a maior, mas muitos empresários, por falta de assessoria especializada, desconhecem essas possibilidades. Inclusive, postos de combustíveis, lojas de conveniências, revendedores de pneus, padarias, supermercados, lanchonetes, restaurantes, revendedores de bebidas frias, lojas de autopeças, perfumarias, farmácias e drogarias, a depender do caso, são apresentados como setores com muitas chances para recuperação de créditos dos últimos cinco anos.

 

Apesar de toda a complexidade do sistema tributário e do fato que o fisco não baterá na porta da empresa falando que lhe deve, porque ele só bate para cobrar, existem meios legais e seguros para recuperação de créditos. Com isso, o empresário poderá ter mais condições financeiras para gerir o seu negócio. Ainda mais que nunca, com todas essas ameaças legislativas para aumentar tributos e a crise econômica da COVID-19, as empresas precisam buscar fluxo de caixa para sobreviver. Além da revisão da proposta de lei sobre a reforma tributária, a revisão de tributos também é um bom caminho para trilhar. Mas essa explicação sobre recuperação de tributos é assunto para outro texto. O que não se pode, todavia, é o governo federal, já não bastassem todas as distorções do sistema e a crise pandêmica, querer aumentar a carga tributária e continuar desrespeitando o federalismo fiscal cooperativo.

Mas então, qual a sua visão sobre essa proposta tributária do governo federal? Você acredita que ela é benéfica ou prejudicial para o Brasil? Deixa sua opinião nos comentários, queremos saber de você.

 

Roseli Matias é advogada, mestra em Política e Tributação pela UNICAP-PE, especialista em Direito Público pela Università di Pisa/Itália, professora de Direito Financeiro, pesquisadora do Grupo Política e Tributação - CNPq, Sócia da ABDF, filiada a International Fiscal Association - IFA, sócia da ATRIAL, e exerce, desde 2013, o cargo de Procuradora Geral do Município de São José da Laje/AL

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