Expedição constata que além do perigo da contaminação, as poluições com esgoto e dos agrotóxicos ameaçam a fauna e flora nas cidades ribeirinhas
Pão de Açúcar - Os reservatórios de Sobradinho (BA) e de Xingó (AL) continuam autorizados a manter o dobro da vazão, agora em 1.100 m³/s até o dia 30 de novembro. A medida é mais uma das estratégias dos órgãos de defesa ambiental federal na tentativa de impedir que as manchas de petróleo que contaminam o litoral do Nordeste avancem pela foz do "Velho Chico" e prejudiquem berçários naturais e pontos de reprodução de diversas espécies marinhas na região do baixo São Francisco. Em vários pontos das margens do rio, a água já encobriu estabelecimentos comerciais, barracos de pescadores e dificultam o acesso das pessoas.
A vazão já esteve maior, em 1.300 m³/s. Ao perceber a redução do perigo de contaminação pelo óleo de origem ainda desconhecida e os pequenos transtornos nas cidades ribeirinhas, a Agência Nacional de Água (ANA) autorizou a redução da descarga, mas mantém no nível alto, que significa o dobro da descarga do ano passado, quando a vazão estava em 550 m³/s.
A redução da vazão foi solicitada também pelo Operador Nacional do Sistema Elétrico (ONS) em virtude da estiagem na cabeceira do rio e na maioria dos estados da bacia do São Francisco (Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Sergipe e Alagoas). O aumento do fluxo da vazão foi percebido e comemorada pela maioria dos 50 pesquisadores que participam da II Expedição Cientifica do Baixo São Francisco, que começou no último dia 18 e prossegue até dia 27.
Segundo o coordenador da expedição, professor Emerson Carlos Soares (pós-doutor de Ciências Aquáticas e professor da Cadeira de Estatística e Toxicologia de Orgânicos Aquáticos da Universidade Federal de Alagoas - Ufal), na primeira expedição em outubro do ano passado a vazão do rio era de 550 m³/s. "Além de ajudar a conter a entrada da mancha de óleo pela foz, o aumento da vazão contribuiu para melhorar as condições do rio".
O aumento da descarga também faz parte da política de aumentar o fornecimento de energia elétricas pelas usinas de Xingó e Sobradinho. Do ponto de vista ambiental, o aumento do volume de água abaixo de Xingó fez desaparecer os bancos de areia percebidos pelos cientistas na primeira expedição. "No ano passado, foram detectados 27 novos bancos de areia. Desta vez, tinha bem menos bancos. Ainda assim, a navegação permanece difícil, perigosa, tanto que passamos por duas situações de encalhe entre os municípios de Pão de Açúcar e Belo Monte", revelou o professor Emerson Soares.
Aumento de vazão ajuda na reprodução das espécies do rio
Outro a aspecto positivo constatado pelos cientistas da Expedição do Baixo São Francisco é que o aumento da vazão no percurso de 230 quilômetros estimulou a reprodução das espécies da região. Nos primeiros dias de expedição, foram capturadas para estudos 12 espécies importantes de peixes da bacia como piau, piranhas e xiras. As fêmeas estavam ovadas e os machos em condições de promover a reprodução. Isso demonstra, segundo o professor Emerson Soares, que o aumento da vazão com a renovação da água estimula os organismos a se reproduzirem dentro de um processo ambiental mais ou menos equilibrado. "Os animais recolhidos estavam ovados e com espermatozoides".
Ele aproveitou para destacar a importância do período de "defeso" do rio neste momento. No período de 1º de novembro até o dia 29 de fevereiro de 2020, o professor lembrou que é permitido a pesca apenas com uso de anzóis e só para consumo. Permanece proibida a pesca com redes para comercialização.
"Esta pesquisa analisa também as questões relativas à qualidade da água, os problemas causados pelos poluentes toxicológicos, metais pesados no pescado e na água, a situação dos esgotos urbanos, são utilizados sonares para verificar a batimetria (medição da profundida) do rio". Além disso - continua o coordenador da expedição- robôs aquáticos movidos à energia solar também fazem diagnóstico do fundo do rio. Outros equipamentos como escâner aquático faz a radiografia e revela possíveis fontes poluentes e a situação dos organismos nativos.
Nas primeiras investigações, os pesquisadores notaram pequenas melhoras na qualidade da água provocada pelo aumento da vazão de Xingó. Porém, a maioria dos cientistas disse que os resultados preliminares das pesquisas a respeito da saúde ecologia do baixo São Francisco indicam que a situação permanece grave.
Embarcação se transforma em laboratório de 22 áreas de pesquisas
A embarcação de passageiros do rio São Francisco "Magnifica", cadastrada em Penedo, se transformou num sofisticado centro de pesquisa equipado com robôs aquáticos, microscópicos, computadores, centros de análises de animais, da água, de toxicologia, de pesquisas aquáticas avançadas, com espaços para exposição fotográfica, de observação, de utilização de energia solar. Porém, a navegação ainda aconteceu com utilização de combustível fóssil (diesel). A expedição mobilizou 50 cientistas de 22 áreas de pesquisas.
As atenções dos pesquisadores se voltaram para as áreas de investigações científicas de causas e efeitos de produtos contaminantes, qualidade da água e os impactos sobre a fauna aquática no baixo São Francisco.
Esta é a segunda expedição científica do Baixo São Francisco (a primeira foi em outubro do ano passado) e que pela primeira vez analisa as questões ambientais num percurso de 230 quilômetros entre os municípios de Penedo e Piranhas. Em cada parada, a embarcação foi recebido com festa pelas autoridades municipais, ambientalistas, pescadores e trabalhadores rurais ribeirinhos. Os estudantes das escolas públicas participaram de aulas e cursos de conscientização ecológica, dentro do barco.
Pescadores, lavadeiras e cientistas afirmam que "São Francisco" está na UTI
Entre os que esperavam a chegada dos cientistas da II Expedição do Baixo São Francisco estavam pessoas simples das comunidades, como pescadores, lavadeiras, além de prefeitos, vereadores e secretários municipais. Quando as pessoas foram questionados a respeito da situação do rio, a maioria manifestou a mesma avaliação: "O nosso rio está na UTI, não aguenta mais a poluição dos agrotóxicos, do desmatamento das calhas, que dão lugar a pastos para criação de gado, e a poluição dos esgotos das cidades".
A lavadeira Vera Lúcia de Lima voltou a usar a água do rio para lavar a roupa de casa depois de saber que a usina hidrelétrica de Xingó dobrou a vazão. "Antes, quando estava com pouca correnteza (baixa vazão) não dava para lavar roupa. A água estava muito suja, cheia de lodo. A roupa não ficava limpa e tinha cheiro ruim, do lodo".
O pescador Aparecido Caldeira, de 56 anos, disse que atualmente vive como "carroceiro de frete" porque, segundo ele, a pesca caiu muito. "Tinha dia que voltava para casa só com o peixe para comer, depois de muitas horas de trabalho. Os peixes de valor comercial desapareceram. Não compensava mais pescar. Dai troquei de profissão. Agora sou carroceiro", disse Aparecido, casado, quatro filhos.
Artesão
O carpinteiro Renato Torres dos Santos, que faz barcos artesanalmente para pescadores dos municípios de Pão de Açúcar e Piranhas, confirmou que muita gente abandonou a profissão de pescador. "A poluição no rio, as represas da Chesf seguram a vazão e assim acabam com a piracema (período que os peixes sobem o rio para se reproduzir). Sem peixe não tem pesca, não tem pescador nem barco de pescar".
Renato aprendeu a fazer barco com o pai. Ele fabricava duas embarcações por mês. Agora, a cada três meses faz uma e recentemente dispensou os dois ajudantes, porque o movimento caiu mais. "A profissão que herdei do meu pai também está ameaçada. Sem peixe não tem barco de pesca, daí não sei por quanto tempo vou continuar na atividade", lamentou.
O carpinteiro foi receber a equipe de pesquisadores na esperança de que eles ajudem a salvar o rio. "Este rio é a mãe dos ribeirinhos. A nossa mãe está morrendo. Vamos ver se os cientistas nos ajudem a salvar a nossa mãe". Para isso, Renato acha que os cientistas têm que convencer os prefeitos a não jogar o esgotos das cidades no rio e os plantadores de cana e de arroz também a evitar os agrotóxicos das lavouras que ficam perto da calha do rio.
O pescador Claudionor dos Santos, 57 anos, ainda resiste e garante o sustento da família com a pesca, mas não tem sido fácil. Segundo ele, o rio está todo assoreado em vários pontos, tem muito lixo e lodo. "Esta situação acontece quando o rio está sem força, sem correnteza para renovar a água. Assim, o peixe desaparece". O pescador disse que para melhorar a situação, as cinco usinas (hidrelétricas da Chesf) precisam aumentar a vazão das represas. "O peixe não reproduz em água parada. Ele precisa da correnteza do rio", ensinou o pescador.
Claudionor orienta que para navegar tem que ter experiência. "Tem muitos bancos de areia ao longo do rio. O pescador inexperiente pode encalhar ou quebrar o motor nos bancos. Tudo isso acontece por causa da pouca vazão do rio", lamentou. Os peixes que mais resistem às agressões ambientais, segundo Claudionor, são piau, pacu, pirambeba e piranhas. Outras espécies tradicionais como xira, tubarana e surubim desapareceram. "Tem pescador novo que nunca pegou um surubim grande no São Francisco", revelou Claudionor.
Cientistas
A maioria dos pesquisadores que participam da II Expedição do Baixo São Francisco concorda com os pescadores e as lavadeiras. "O rio atravessa momento difíceis. Está na UTI. As causas são poluição dos esgotos, dos defensivos químicos e desmatamentos. O aumento da vazão neste momento é o mesmo que uma vacina que melhora a saúde, mas só isso não resolve", disseram os cientistas.
O coordenador da expedição, professor Emerson Soares, defende que, além de renovação da água com aumento da vazão das represas, são fundamentais as ações paralelas de fiscalização contra desmatamentos, das atividades que provocam assoreamento nas margens, saneamento básico nas cidades, reflorestar as calhas e conter o lixo em local adequado. "Falta uma política ambiental do Estado, dos municípios em Alagoas em defesa do São Francisco. Do outro lado do rio, em Sergipe, tem condição ambiental melhor, mais conservadora".O pós-doutor sustenta que as escolas estaduais e municipais precisam ajudar na defesa do meio ambiente, com atividades e disciplinas ligadas à educação ambiental.
Resultados das pesquisas da expedição saem em dois meses
As pesquisas feitas por 50 cientistas de 22 áreas devem ser divulgadas em 60 dias. A informação foi revelada pelo coordenador da II Expediência Cientifica do baixo São Francisco. "Como estamos fazendo análises criteriosas, acredito que em dois meses teremos os resultados divulgados. Antes disso, cruzaremos as informações coletadas, estamos com 22 áreas de pesquisas em andamento. Queremos avaliar o desmatamento, assoreamento, qualidade da água, educação ambiental das comunidades ribeirinhas, poluição por contaminantes tipo metais pesados, coliformes fecais, os impactos nos indivíduos, na flora e na fauna". Diversas variáveis serão analisadas e confrontadas, explicou o professor.
Ao ser questionado sobre o que os cientistas defendem como ação emergencial para melhorar as condições ambientais no baixo São Francisco, o professor Emerson defendeu a necessidade de se criar programa forte de biomonitoramento. "Esse biomonitoramento não é só para o rio São Francisco. Este trabalho tem de envolver todo o Estado. É preciso monitorar os recursos hídricos, porque há necessidade de certificar as condições do pescado para o consumo. É preciso identificar quais os tipos de agressões nos rios. Além disso, é necessário saber também as condições da água e identificar os tipos de contaminantes".
O professor mostrou preocupação com a falta de controle dos agrotóxicos usados nas lavouras. "A gente não sabe, por exemplo, quais os controles usados nas culturas próximas da calha do rio São Francisco. Identificamos que nas áreas do Sertão se usa menos agrotóxico que os aplicados nas regiões de Porto Real do Colégio até Penedo, onde tem monocultura da cana-de-açúcar, do arroz e outras. Por isso, defendo o programa de monitoramento da água e da qualidade do pescado. Este trabalho deve ser consorciado com os governos federal, estadual e municipais".
A expedição apresentará a radiografia dos 230 quilômetros percorridos em dez dias. Porém, os pesquisadores acham que essa radiografia é insuficiente. "É preciso ter a radiografia dos outros 355 dias", disse o professor Ricardo Araújo, do Centro de Ciências Agrárias da Ufal, ao defender soluções sustentáveis para garantir a vida dos ribeirinhos.
Na expedição do ano passado, a vazão do rio estava em 550 m³/s e este ano dobrou. Os resultados das pesquisas de contaminação por bactérias, coliformes fecais e metais pesados no ano passado apresentaram resultados preocupantes. Este ano, com aumento vazão do rio, devem cair os índices de contaminação. O que há em comum em relação ao ano assado é que em todos os pontos de coletas das cidades ribeirinhas foram constatadas contaminações diversas. "As análises desta expedição podem apresentar outros resultados porque o rio está com vazão dobrada e mais correnteza. Mesmo assim, é preciso considerar que as cidades ribeirinhas não têm sistema de tratamento de esgoto nem política de preservação ambiental para o rio", destacou o professor Emerson Coares.
Custo
A II expedição do baixo São Francisco custou R$ 140 mil, mobilizou 60 pessoas, dentre elas 50 pesquisadores, equipamentos avaliados em mais de R$ 1 milhão, como submarinos robóticos, de energia solar, escâner submarinos, microscópios sofisticados entre outros equipamentos.
Os resultados das pesquisas vão ser disponibilizados para as três esferas de governo, universidades, escolas ribeirinhas. O trabalho resultará num livro abordando as duas expedições pioneiras no baixo São Francisco. Os cientistas assumiram compromisso de visitar as cidades ribeirinhas para trabalhar educação ambiental com gestores públicos, empresários, políticos e estudantes. "O relatório apresentará causas dos danos ambientais e sugestões de solução para os gestores acatarem ou não a política de preservação ambiental". Além de livro, serão disponibilizados fotografias, filmagens e documentários. Os relatórios terão identificação e solução específica para cada cidade, disseram os pesquisadores.
A expedição conta com o trabalho de 11 instituições: Universidade Federal de Alagoas (Ufal), Universidade Federal de Sergipe (Ufse), Embrapa, Instituto Espanhol de Oceanografia, Codevasf, Chesf, Comitê da Bacia do São Francisco, secretarias estaduais de Meio Ambiente e de Ciência e Tecnologia e empresas privadas, além de apoio das prefeituras. Os relatórios serão divulgados em três línguas: português, espanhol e inglês.
Os cientistas trabalham para que a expedição aconteça anualmente e pretendem inseri-la num programa de monitoramento da nascente à foz do rio, que corta cinco estados. Esta pesquisa pioneira no baixo São Francisco, de 50 cientistas, está sendo acompanhado por instituições da Europa, Estados Unidades e Oriente Médio.