Projecionismo Brasileiro de Segurança Pública

20/06/2018 12:13 - Fabrício Rebelo
Por Fabrício Rebelo
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Não fosse a seriedade do assunto, a forma leviana com que determinadas entidades brasileiras tratam a segurança pública não passaria de motivo de piada. Porém, é difícil manter o bom humor quando é essa leviandade que pauta a quase totalidade das ações governamentais e é de seu estrondoso erro primário que resulta a altíssima violência letal em que estamos imersos.

Explicar a segurança pública não é tarefa simples, isso é fato. Há toda uma intrincada equação, composta de diversos fatores, que determina se os índices de criminalidade serão maiores ou menores. Só que isso não pode ser motivo para simplesmente se inventar explicações mirabolantes para aquilo que se apresenta como realidade, muito menos, diante de uma rejeição total à explicação simples, se buscar mudar a própria realidade, para voltar as análises a um cenário fictício. Mas é exatamente isso que vem sendo feito no Brasil.

Em sua edição de 2016, a última em que veiculado, o Mapa da Violência – estudo que por muitos anos guiou a análise da criminalidade nacional – sintetizou em seu conteúdo uma forma nova de se analisar a segurança pública: a projeção de indicadores. A ideia foi a de buscar elementos para justificar a manutenção do Estatuto do Desarmamento. Para tanto, diante da irrefutável piora dos indicadores criminais após ele, a inusitada saída dos responsáveis pelo estudo foi passar a afirmar que, não fosse aquela lei, tudo seria ainda pior. Como fizeram isso? Literalmente, buscando prever o futuro.

O curioso método consistiu em traçar uma projeção linear do crescimento dos homicídios com arma de fogo e, em seguida, confrontar a projeção com a realidade, para dizer que a diferença entre uma e outra corresponderia às vidas salvas pelo desarmamento. Evidentemente, o absurdo daquilo foi prontamente desmascarado, pois a aberrante projeção nos conduziria a acreditar que, não fosse o estatuto, todos os brasileiros estariam mortos em menos de noventa anos, e isso apenas em se considerando os homicídios com arma de fogo (https://goo.gl/v34PsE). 

A aludida projeção é por muitos tomada como determinante para o encerramento da veiculação do Mapa da Violência, lançado que foi ao descrédito por encampar algo de tal natureza. No entanto, ao que parece, o método projecionista deixou seu legado ao sucessor do Mapa, o “Atlas da Violência”, veiculado pela organização não governamental (ONG) Fórum Brasileiro de Segurança Pública e pelo IPEA, no qual também é adotado – ainda que menos explicitamente – como “método” de análise.

Na edição 2018 (relativa aos dados de 2016), no mesmo propósito de defender o Estatuto do Desarmamento contra a realidade, o Atlas da Violência sugeriu ter sido tal lei a responsável por barrar o crescimento proporcional da participação das armas de fogo nos homicídios – único parâmetro genuinamente válido para a análise dessa questão. Nesse sentido, ao analisar o uso de armas de fogo na prática da violência letal, o Atlas registra a seguinte afirmação: 

“Uma verdadeira corrida armamentista que vinha acontecendo desde meados dos anos 1980 só foi interrompida em 2003, quando foi sancionado o Estatuto do Desarmamento. O fato é que, enquanto no começo da década de 1980 a proporção de homicídios com o uso da arma de fogo girava em torno de 40%, esse índice cresceu ininterruptamente até 2003, quando atingiu o patamar de 71,1%, ficando estável até 2016. Naturalmente, outros fatores têm que ser atacados para garantir um país com menos violência, porém, o controle da arma de fogo é central” (p. 04/05).

Do que se extrai do documento, há, ali, indisfarçável indução do leitor à conclusão de que, não fosse o Estatuto do Desarmamento, o uso de armas de fogo nos homicídios continuaria crescendo após 2003, como o fizera entre 1980 e aquele ano. Ou seja, mais uma projeção, em nítido tom de nada mais do que pura adivinhação. E, tal como ocorrera com a esdrúxula projeção do quantitativo de mortos com arma de fogo, a nova futurologia abarcada pelo Atlas de Violência esbarra na realidade.

Isso porque, se é fato que a proporção de homicídios com arma de fogo saiu de 40% em 1980, cresceu até 71,1% em 2003 e continuaria a crescer se não fosse o Estatuto do Desarmamento, forçosamente, também há de ser fato que em 2025 mais de 100% dos homicídios seriam cometidos com arma de fogo (!).

A conta por trás da projeção do Atlas é simples. De 1980 a 2003 há um intervalo de 23 anos, no qual o uso de armas de fogo nos assassinatos saiu de 40% para 71,1%, ou seja, um crescimento de 1,35 ponto percentual ao ano. Logo, se é do estatuto a responsabilidade por frear esse crescimento, o que se está afirmando é que, não fosse ele, esse exato crescimento continuaria após 2003, com o que, já em 2025, as armas de fogo responderiam por exatos 100,8% dos homicídios.

A objetividade dos números, mais uma vez, destrói a fantasia ideológica que busca na futurologia elementos para uma inexplicável insistência em defender uma ideologia desarmamentista, cujos resultados são clara e inquestionavelmente negativos. 

Há, pois, uma recusa recalcitrante em simplesmente admitir a realidade, algo que vem atrasando imensamente o país nos avanços na contenção criminal. Afinal, enquanto se brinca de prever o futuro, no mundo real, o mesmo que os ideólogos projecionistas tomam como algum tipo de realidade paralela, vamos batendo sucessivos recordes de homicídios, sobretudo os com uso de armas de fogo. E só resta esperar pela a próxima projeção mirabolante para explicá-los, sob métodos para os quais vale tudo, menos reconhecer o óbvio.
 

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