Séculos depois dos primeiros relatos, em textos da antiguidade, acerca das doenças mentais como a depressão, pacientes e especialistas ainda lutam contra o preconceito e a desinformação envolvendo o tema. Para o psiquiatra Adalcyr Cunha, vice-presidente da Associação Alagoana de Psiquiatria, falar sobre o assunto, mostrando, inclusive, a química por trás das ditas ‘doenças da alma’ ainda é a maior arma para enfrentar o mal do século.

 Além das próprias doenças, o preconceito envolve também os profissionais da psiquiatria, vistos por muitos ainda como “médicos de loucos”, e os remédios utilizados no tratamento. Se ninguém questiona o fato de uma pessoa diabética, hipertensa ou cardíaca precisar de medicamentos para levar uma vida normal, o mesmo não acontece com aqueles que sofrem de depressão.

“A depressão é uma doença crônica que afeta todo o sistema fisiológico da pessoa doente. A produção de cortisol, hormônio do stress, aumenta em uma pessoa deprimida, e faz com que diminua uma substância que interfere no crescimento e sobrevivência dos neurônios. Ocorre ainda um desequilíbrio nos níveis de neurotransmissores como a serotonina e a noradrenalina”, exemplificou o psiquiatra, desmistificando a ideia de que a enfermidade que tem um forte componente genético é puramente emocional.

O especialista destacou que a depressão pode ser classificada em leve, moderada ou grave. Nos casos leves e moderados, doenças como depressão, síndrome do pânico e outros transtornos de ansiedade podem ser tratadas sem medicamentos, com psicoterapia, atividade física e até exposição à luz solar ajuda na recuperação, mas há os casos graves em que a medicação e até o internamento precisam ser imediatos como forma de proteger o próprio paciente.

Ele reforçou a importância de combater o estigma em torno das doenças mentais, como fundamental inclusive para salvar vidas. “O índice de suicídios é muito alto em todo o mundo, mas a possibilidade de prevenir existe. A maioria dos suicidas padece de doença mental não tratada”, alertou, acrescentando que, em relação à população geral, em um deprimido o risco de suicídio aumenta em 36 vezes.

O profissional destacou ainda que as doenças têm tratamento, controle e que o objetivo principal é sempre a remissão completa dos sintomas. E, mesmo quem tem tendência à recorrência pode ter uma vida normal tomando antidepressivos que atuam para equilibrar os neurotransmissores.

“A depressão é considerada crônica e tende a se repetir. Uma pessoa pode ter apenas um episódio durante a vida, mas 50% delas podem ter um segundo, e a cada episódio, fica mais suscetível a recorrência. O tratamento é de longo prazo e a interrupção dele, por conta própria, aumenta a possibilidade de recorrência”, orientou, destacando que, nos casos resistentes à medicação, a eletroconvulsoterapia, além do internamento, tem salvado muitas vidas.

Questionado sobre a depressão pós-parto, assunto que ganhou os noticiários após o suicídio de uma jovem mãe na capital, Adalcyr Cunha explicou que o tratamento é similar ao da depressão em geral, ressaltando que o cuidado com a paciente deve ser maior, devido ao envolvimento de uma criança no problema: “Da mesma forma que a depressão em geral, a depressão pós-parto pode ser leve, moderada ou grave, com risco de suicídio. E, como toda doença mental, ainda é pouco discutida, ainda há o estigma que tentamos combater”, finalizou.

Transtornos psíquicos

“Os transtornos psíquicos são envoltos em uma série de representações sociais que vão desde uma visão depreciativa, marcada pelo estigma e preconceito, passando também pelo medo, o que muitas vezes afasta as pessoas das alternativas de cuidado, como a psicoterapia ou tratamento medicamentoso. Não é incomum as pessoas resistirem a buscar ajuda”, revelou o psicólogo e professor da Universidade Estadual de Ciências da Saúde de Alagoas (Uncisal), Fred Alves, fazendo coro à fala do vice-presidente da Associação Alagoana de Psiquiatria.

Ele lembra que, entretanto, o cenário já foi muito pior e hoje é maior a compreensão de que depressão, por exemplo, é uma questão de saúde pública que precisa ser tratada e, embora tenha maior incidência entre mulheres, não é um problema específico de nenhum sexo,  raça, credo ou nível sócio- econômico.

“O preconceito remonta a questões que vêm desde a antiguidade, principalmente em momentos históricos, quando se associou o sofrer psiquicamente a questões como religião, incapacidade para o trabalho e periculosidade”, explicou, acrescentando que a depressão é um problema multifatorial, que envolve aspectos orgânicos e psíquicos, também com forte relação com as vulnerabilidades sociais das pessoas.

O psicólogo acrescentou que a doença pode ser desencadeada nas diversas fases da vida e por diversos fatores, que vão desde um trauma, a alterações orgânicas ou até pela incapacidade de se elaborar as mudanças, crises e desafios que se apresentam durante a existência.      

Multifacetária, a depressão também pode assumir diversas formas e se manifestar a partir de diferentes sintomas, associados ou não a quadros de ansiedade, afirmou, revelando que geralmente é caracterizada por uma tristeza persistente, com perda do interesse para atividades cotidianas, alterações de humor, choro imotivado, alterações no sono, libido e baixa motivação para atividades da vida cotidiana. “Além disso, pode desencadear uma série de sintomas orgânicos como inapetência, dores, dentre outros. É quando então se recomenda o tratamento psicológico aliado a medicamentos”, destacou. 

Ele alertou ainda que é importante entender que a nem toda tristeza ou luto são depressão, entretanto não se deve menosprezar o sofrimento e a necessidade de ajuda: “É nesse momento que entra a psicoterapia, que consiste em um importante recurso que permite o acolhimento ao paciente no momento de crise e sofrimento, como também o apoio no fortalecimento de sua estrutura psíquica, de modo a desenvolver estratégias saudáveis de enfrentamento das dificuldades cotidianas, auto-conhecimento, controle dos sintomas e melhoria na qualidade de suas emoções e afetos”, concluiu.

Psiquiatra Adalcyr Cunha (Foto: Vanessa Alencar / Cada Minuto)

“Prefiro ser feliz a ter preconceito”

“Aconteceu há 20 anos, mas lembro como se fosse hoje de chegar ao consultório do psiquiatra completamente exausta e sem esperança e ele desenhar para mim, literalmente, o que acontecia no cérebro de uma pessoa deprimida... Foi ali que comecei a entender que não dependia de mim, da minha força de vontade, vencer a doença. Foi um alívio e o começo do fim de uma jornada que durou meses de sofrimento”.

O relato acima é da servidora pública Vitória*, de 40 anos, que preferiu se manter no anonimato. Há duas décadas, quando ainda pouco se discutia sobre o assunto, ela teve síndrome do pânico e depressão, ficou quase anoréxica e peregrinou durante mais de seis meses entre médicos de várias especialidades até ser diagnosticada por uma clínica geral, que a encaminhou para o psiquiatra.

“Quando ouvi que estava com depressão, tomei um susto... Porque sempre fui muito bem humorada, sociável, alegre... Não achava que pudesse acontecer comigo e não acreditavaque todas aquelas sensações, falta de ar, tremores, taquicardia, insônia, inapetência e tristeza profunda, não tivessem uma causa física, porque, até então, eu também achava que depressão era uma doença puramente emocional”, prosseguiu.

A servidora pública contou que chegou a dizer ao psiquiatra que tomaria os remédios, embora não acreditasse que eles surtiriam efeito. “Era inacreditável pensar que uma pílula poderia dissolver tanta tristeza, tanta dor... Mas, em poucos dias, o remédio começou a fazer efeito e recuperei a vontade de viver, voltei a me alimentar, a sorrir e a achar graça na vida. Considero-me uma felizarda, porque sei que nem sempre o primeiro medicamento e dosagem prescritos surtem o efeito esperado, sem contar com os efeitos colaterais, que praticamente não tive”, relatou.

Depois de outros três ou quatro episódios de depressão em duas décadas, hoje Vitória continua com acompanhamento psiquiátrico e toma diariamente remédio basicamente para controlar a ansiedade.

“Já tive muito preconceito em relação a tomar remédios, mas o mesmo psiquiatra que desenhou para mim o que acontecia no cérebro de uma pessoa deprimida, explicou que a depressão pode ser crônica, mas, não precisa ser limitante. Do mesmo jeito que alguns diabéticos precisam de insulina diariamente, eu também preciso de remédios para ter uma boa qualidade de vida e isso está muito bem resolvido na minha cabeça. Prefiro ser feliz a ter preconceito”, finalizou.

O começo dos medos

A jornalista Bárbara*, 48 anos, que também preferiu não se identificar, conta que as crises de síndrome do pânico começaram na década de 90, quando a doença ainda era de certa forma desconhecida e escondida por muitos. Ela lembra que a família entendia pouco, ajudava com amor, atenção e segurança, mas a sensação estava lá, instalada.

“No início da síndrome do pânico fiz psicanálise, o que me ajudou imensamente e, nas crises, recorria a técnicas orientais, imposição de mãos, reich... Mas, depois fui desenvolvendo outros medos e por muito tempo esqueci como era ser ‘normal’, sem a crise”, lembrou ela, contando que, enquanto aprendia a lidar com as crises, conheceu um psiquiatra que foi essencial para esclarecer o que de fato ocorria e “jogar luz na escuridão do medo e do desconhecimento”.

“Tinha preconceito para tomar remédios. Demorei a tomar e assim demorei a tratar a química do meu corpo que estava claramente alterada. Um belo dia, depois de ter todos os tipos de pânico e lendo sobre casos como esses, eu cheguei ao Prozac, era a ‘droga da moda’ para casos como o meu. Fui a um médico maravilhoso, que rapidamente me diagnosticou e passou a medicação correta. Comecei a tomar e em poucas semanas já me sentia melhor, mas ainda não lembrava como era ser normal”, relatou.

Sentindo que estava no caminho certo, Bárbara contou que seguiu a vida com o que ela chama de seus “jogos de sobrevivência”: trajetos pensados com possíveis paradas, caso se sentisse mal, nada de voos longos, elevadores, bebidas alcoólicas e drogas, “uma porta aberta para as crises”, segundo ela.  

Hoje, a jornalista é pontual ao afirmar que “é chato tomar remédio direto”, mas, frisa que é fundamental esse acompanhamento, que deve ser feito com orientação médica, análise e qualquer outra abordagem de autoconhecimento que possa ajudar.

“Os medos e os sentimentos de pânico parecem ficar de certa forma adormecidos ou guardados no lugar mais alto de uma estante onde, mesmo sem vê-los, eles estão ali, escondidos, mas estão lá!”, contou, lembrando que tudo voltou há alguns anos, depois que ela sofreu um assalto.

Ela disse que, além dos remédios e da terapia, a companhia de uma cadelinha foi fundamental para ajudá-la a sair desta nova crise. “Credito a minha cura a minha fé em primeiro lugar, depois à medicação e a minha cachorra com seu amor incondicional. Hoje estou bem. Curada. Há episódios eventuais, mas, esqueci como é viver com pânico”, concluiu a jornalista.

Números

Conforme dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) divulgados este ano, o Brasil ocupa o primeiro lugar no ranking mundial em número de pessoas com transtornos de ansiedade, com 9,3% da população, e o quinto lugar em casos de depressão, mal que atinge 5,8% dos brasileiros.

Ainda segundo a entidade, são cerca de 11,5 milhões de pessoas com depressão e 18,6 milhões com transtorno de ansiedade no Brasil.

No mundo, a depressão atinge 322 milhões (4,4% da população) e é a doença que mais contribui com a incapacidade no mundo, sendo também a principal causa de suicídios, com cerca de 800 mil casos por ano.